Carreiro da Costa, 1957

tinturariaRemonta aos primeiros decénios de vida insular, a prática dos vários processos de tinturaria caseira, servida por elementos vegetais. Tais processos encontram-se de tal modo ligados à tecnologia rural da tecelagem nos Açores, que o estudo desta não ficará completo sem a enumeração daqueles. São muitas as plantas, existentes no Arquipélago dos Açores, que têm sido usadas na tinturaria popular.

Uma das mais antigas, que se conhecem é sem dúvida, a planta do pastel (Isatis Tinctoria, Lin.). A exploração desta planta constituiu uma das principais fontes de riqueza dos Açores, durante, aproximadamente, os dois primeiros séculos de vida insular.

Todo o arquipélago, por essa época, vivia quase exclusivamente para tal cultura e para a do trigo. E não só para a cultura do pastel; sim, também para a subsequente indústria, promovendo, o mesmo pastel, depois de granado e exportado, a vinda de muito dinheiro para estas terras. O produto final do pastel dava um azul muito fino e sólido, apreciadíssimo na Flandres.

Igualmente usada na tinturaria, logo no século XV, era, nos Açores, a urzela (Rocella Tinctoria, Ach.) — líquen que dá com muita abundância nas rochas açorianas. O seu comércio era do mesmo modo muito importante. Ainda no século XIX, conforme poderemos depreender dos livros do Cap. Boid, dos irmãos Bullar’s e de vários cientistas como Drouet e Morelet, a busca da urzela, nas várias ilhas dos Açores, e a sua exportação para a Inglaterra, eram actividades sobremodo rendosas.

A urzela dava um castanho muito apreciado e era tida como coisa de muito valor para os estrangeiros. Noutros tempos, como ainda agora nos nossos dias, a sua colheita era muito arriscada e fazia-se com o auxílio de cordas, por meio das quais os homens desciam as perigosas rochas, a pique, situadas à beira-mar das nossas ilhas.

Mas não eram só estas duas espécies que se aplicavam outrora na tinturaria popular, nos Açores. Havia, por exemplo, também a ruiva ou ruivinha (Rúbia Tinctorum, Lin.) que dava o vermelho. Supomos que se trata da mesma planta a que se refere o famoso Dr. Monetarius quando este, no seu “Itinerarium sive peregrinatio”, escreve que os açorianos tiram também «o maior proveito do azarcão — planta que dá tinta vermelha, isto é, o Waid com que se tingem os panos». O sumagre era importado, noutros tempos, do Continente, especialmente de Lamego.

Feito este ligeiro preâmbulo, tão somente para se ajuizar da antiguidade e da importância económica que tiveram certas plantas tintureiras nos Açores, passaremos agora a referir o modo como nalgumas ilhas — sobretudo em S. Miguel e na Terceira — se tem obtido as mais variadas cores, por meio da chamada tinturaria vegetal, recorrendo para tal não só a alguns apontamentos colhidos por nós, directamente, como ainda aos elementos contidos em trabalhos dos falecidos etnógrafos Dr. Luís Bernardo Leite de Athayde (Etnografia Artística, P. Delgada, 1918), Dr. Luís da Silva Ribeiro (in Açoriana, vol. I, Angra, 1935) e também o investigador terceirense P.e Inocêncio Enes (in Boletim do I. H. da I. Terceira, vol. IX, Angra, 1951). Passaremos a referir os vários processos de coloração indicando as cores por ordem alfabética, para melhor ordenação dos elementos.

AMARELO — De um modo geral, em todas as ilhas açorianas, esta cor é obtida com o auxílio da flor de uma erva espontânea, anual, que vegeta nos caminhos, nas pastagens e, principalmente, nas restevas do trigo — planta conhecida pelos nomes de lírio dos tintureiros e lírio das searas (Reseda Luteola, Lin.).

As fervuras obedecem aos mesmos preceitos estabelecidos para a obtenção do vermelho (vid. adiante), com algumas diferenças de região para região. Assim, na zona leste de S. Miguel, esta cor é conseguida não propriamente com a flor daquele lírio mas com troços da planta, picados. No vale das Furnas, as flores são metidas na água quando está já a ferver.

Quando, de novo, a água levantar fervura, põe-se a lã, já cardada, a qual ferve até tomar cor. Seguidamente, retira-se a lã da panela e põe-se a escorrer. Uma operação complementar para a fixação da cor, consiste em colocar-se a lã, depois de escorrida, num alguidar com água coada ou “sanrada” onde se tenha dissolvido pedra-hume. A lã, aí mergulhada é imediatamente abafada até que a água arrefeça.

Dão o nome de água coada ou sanrada àquela que se ferve, tendo dentro uma boneca de pano com cinza.


Na ilha Terceira conhecem-se as seguintes variantes:
a) Ferve-se uma quarta de alqueire (3,3 litros) da flor do lírio por cada libra de lã a tingir e que se mergulha num litro do cozimento, enquanto se ferve noutra panela meia quarta de cinza de faia (Myrica Faia, Dry.) ou giesta (Sparteum Junceum, Lin) com pedra-hume — para meter a lã, depois de molhada no cozimento de lírio, feito o que se lava em água limpa e se põe a secar (L. Ribeiro).
b) «Ferve-se a flor do lírio durante cerca de quatro horas até a água ficar amarela; coa-se, torna-se a levar ao lume com pequena porção de pedra-hume. Quando está a ferver, mete-se a lã no líquido e continua-se a ferver durante duas horas. Faz-se água de barrela com bastante cinza, coa-se por um pano bem tapado e mete-se, na água da barrela, a lã ; depois de retirada da tinta, abafa-se e deixa-se estar fora do lume por espaço de uma hora; tira-se então a lã e lava-se em água limpa. Para tingir cada libra de lã é preciso um alqueire de flor» (P.e Inocêncio Enes).

AMARELO CLARO Em todas as ilhas este amarelo é obtido por meio de cascas de cebola secas (Allium Cepa, Lin.). Fervem-se a cascas, conjuntamente com a lã, durante o espaço de duas horas, variando a porção das mesmas cascas, segundo o amarelo mais ou menos carregado que se deseja.

AMARELO OCRE — Esta tonalidade de amarelo, quase castanho, é obtido com a urzela a que acima nos referimos. Em S. Miguel, sobretudo na região da Bretanha, machucam o líquen num tacho com água e pedra hume, fervendo-se depois a lã nesse cozimento. O tempo desta fervura varia consoante a tonalidade que se pretende conseguir.

Se se quiser uma tonalidade escura, deverá ferver com uma porção de fuligem de chaminé metida numa boneca de pano. Na ilha Terceira, freguesia dos Altares, «deita-se a lã em água fria com a urzela e põe-se ao lume. Enquanto se pode aguentar o calor, vai esfregando à mão a lã com a urzela.

Depois de estar a ferver, observa-se a tinta e tira-se do lume quando tem a cor desejada, porque quanto mais ferve mais escura fica. Não se adiciona pedra hume nem se usa barrela. Para cada libra de lã, é preciso um alqueire de urzela» (P.e Inocêncio Enes).

AZUL — Para conseguirem esta cor, os açorianos recorrem a uma droga importada, certamente porque o pastel desapareceu dos campos destas ilhas. Essa droga é o anil ou pedra azul da loja — como também lhe chamam.

Em S. Miguel, o azul é obtido, preparando-se previamente um líquido formado por urina em decomposição, por um pouco de aguardente e pelo referido anil. Aí se mergulha a lã por cerca de quinze dias. Passado este tempo, a lã é arejada, repetindo-se, porém, esse banho quatro ou cinco vezes.

Decorridos, finalmente, outros quinze dias, lava-se e seca-se. «Ao fim de dez dias, dá-se ar e é preciso que ninguém de fora a veja para evitar o mau olhado, e só se deve mexer com ela passados cinco dias da lua nova» (Luís Bernardo).

Na ilha Terceira, para se tingir a lã por meio do anil, mete-se a lã de infusão em urina nos tintureiros (bacias da noite), secando-se seguidamente no forno. (Luís Ribeiro).

BEJE — Para obtenção desta cor, usam, na Terceira, a casca do pinheiro (Pinus Marítima), recorrendo-se ao mesmo processo da aplicação da urzela para o amarelo-ocre. A panela, porém, terá que ser de lata ou de ferro esmaltado (P.e Inocêncio Enes).

CAFÉ — A cor com esta tonalidade é obtida na ilha de S. Miguel preparando-se, antes do mais uma porção de água, com cascas de raiz de sabugueiro (Sambuscus niger, Lin.) ou ginja pisada (Prunus Cesarus, Lin.).

Nessa água colocam-se depois a lã, o algodão ou o linho que se pretende corar. Essa imersão dura nove dias, durante os quais se deve mexer bem. Caso se deseje abreviar o tingimento, pode ferver-se durante uma hora. Na Terceira, a cor de café com leite, é obtida com a casca de cebola fervida em chá preto.

CASTANHO — Para esta cor, recorre-se, como se viu à urzela. No entanto, na ilha de S. Miguel, emprega-se o cozimento de cascas de faia ou de castanheiro, (Castanea Sativa, Mill.) enquanto na Terceira, se utiliza também o cozimento de folhas de nogueira (Juglans régia, Lin.) com sal.

Nesta mesma ilha usam, para um castanho mais claro a casca da nogueira ou do sanguinho (Rhamus Satifolia, L’Herit) e, ainda, a folha do tabaco. Quanto a este último processo, «ferve-se a folha do tabaco com a lã, na razão de 250 gramas por libra desta, durante o tempo preciso para tomar a cor desejada, pois quanto mais ferve mais escura se torna».

CINZENTO — Tanto em S. Miguel como na Terceira, obtêm-no com cascas de eucalipto (Eucaliptus Globulus, Labill.), para o cinzento mais claro, e com cascas de cedro (Juniperus brevifolia, Lin.,) para o mais escuro ou avermelhado, fervendo-se as cascas durante quatro a cinco horas. Coada essa água, põe-se a mesma de novo a ferver com a lã, cerca uma hora.

PRETO — Em S. Miguel são conhecidos dois processos de obtenção de preto. O primeiro consiste no modo de obtenção do azul, empregando-se porém, a lã escura em vez de branca. O segundo resume-se no seguinte: «Deitam-se as vagens de favas de molho, durante um dia, em água fria; depois essas cascas vão a ferver durante duas horas; terminada a fervura são tiradas da água. A esta adiciona-se um pouco de sal, capa-rosa e verdete. Segue-se nova fervura e só então se junta a lã das ovelhas (lã escura), que ferve até ficar bem preta. Finalmente, seca-se ao sol» (Luís Bernardo).

Na ilha Terceira, o preto tem sido obtido, desde sempre, por vários modos e por meio não só das vagens de fava (Vicia Faba, Lin.), mas ainda com a casca da faia e os olhos da silva (Rubus Ulmifolius, Lin.) e da amoreira (Morus Nigra, Lin.) e o trigo queimado (Luís Ribeiro).

O emprego das cascas da faia consiste em deitarem-se estas «de molho durante dois dias, findos os quais se fervem cerca de oito horas; coa-se e põe-se de novo ao lume. Quando ferve a segunda vez, deita-se pedra-hume e capa-rosa e deixa-se ferver meia hora. Mete-se depois a lã na tinta e ferve-se duas horas» (P.e Inocêncio Enes).

VERDE — Na ilha de S. Miguel obtêm, no geral, a cor verde pondo a lã já tinta de azul no banho como se fosse para conseguir o amarelo. Da combinação do azul com o amarelo resulta naturalmente o verde. Todavia, na ilha Terceira empregam a casca da nogueira (para o caso do verde-seco) e a rama da urze (Érica Azorica, Hochst.).

Neste último caso, ferve-se a rama da urze durante quatro horas, coa-se, torna-se a pôr ao lume e, quando está a ferver, mete-se a lã que ferve durante cerca de uma hora. Para cada libra de lã é preciso um alqueire de rama bem calcada» (P.e Inocêncio Enes);

VERMELHO — É a cor mais frequentemente empregada e que goza de grande preferência nos meios rurais micaelenses. Para a sua obtenção, a ruiva ou ruivinha, a que nos referimos, é a planta mais empregada em todos os Açores, certamente porque as suas raízes contêm uma substância particular, chamada alizarina à qual deve as suas propriedades tintureiras, produzindo um vermelho muito sólido.

Em S. Miguel, porém, recorrem também à casca da faia e ainda às cascas das raízes da rapa-língua ou raspa-lingua (Rúbia Peregrina, Lin.). O processo utilizado quanto a estas últimas consiste no seguinte: «as cascas, depois de bem lavadas são pisadas em um gral, cozem juntamente com a lã branca e logo que se note a fervura, tiram-se do lume, vindo então já levemente corada; segue-se, depois uma secagem ao sol.

Procede-se a mais duas cozeduras com a casca da mesma planta e assim se aviva a cor, devendo haver o cuidado de não deixar ferver demasiadamente para que não escureça em excesso. Deita-se, também, erva azedinha (Rvimex Angioscarpus, Murb.) para fixar mais a cor. Por fim, a lã é passada por água» (Luís Bernardo). O vermelho arroxeado, cor do vinho, é obtido na Terceira com um líquen chamado urzelina (Luís Ribeiro).

 

Estes, os mais característicos processos de coloração por meio de elementos vegetais, usados ainda agora nalgumas ilhas açorianas pelas tecedeiras rurais. Deles resultam sempre nos tecidos saídos dos velhos teares, as mais originais combinações, pois que, de uma maneira geral, em todos os trabalhos, as cores casam-se admiravelmente.

São por demais curiosas as mantas utilizadas pelas populações rurais açorianas, cujas barras apresentam por vezes manchas de cores fortes que dizem bem com o restante do pano. As colchas de Água de Pau (S. Miguel) muito conhecidas pelo seu enxadrezado miúdo dão-nos conjuntos dos mais vistosos, umas vezes combinando-se o amarelo com o vermelho, outras o azul ou o vermelho com o branco e outras ainda o preto com o vermelho e o branco.

Do mesmo modo se apresentam as mantas regionais terceirenses, nalguns pormenores, idênticas às de Água de Pau, mas, no geral, semelhantes às de S. Jorge, com desenhos muito originais de estilizações de flores, vasos, estrelas e rosetas. Estas de S. Jorge mostram-se, porém, mais garridas do que as da Terceira.

Muito açorianas pela natureza do tecido e pelo tingimento que lhes dão, costumam ser as estamenhas regionais com que os lavradores e muito boa gente das vilas e cidades fazem os seus fatos. As cores habituais das estamenhas são o castanho, o preto, o cinzento e o azul — todas elas de vários tons.
Igualmente o são os barretes dos pastores (de S. Miguel), em forma de boca de sino — barretes que com a sua grande bola na ponta, e o seu riscado garrido, emprestam ao trajo local uma das mais surpreendentes notas. É uma tradição açoriana que se mantém e perpetua, que resiste ainda às modas vindas de fora.