uvadecheiroA vinha é cultivada nos Açores desde os primeiros tempos do povoamento destas ilhas. Na era de quinhentos, era o vinho aqui tão abundante — em relação ao reduzido número dos seus habitantes — que até se chegou a amaçar argamassa com vinho em vez de água, segundo conta Fructuoso. Importava-se também vinho da Madeira, onde era abundantíssimo, e algum do Continente.

As castas cultivadas então, todas ou quase todas vindas do Arquipélago vizinho, pertenciam à espécie Vitis vinifera, L., a videira europeia; nem se conheciam então outras espécies susceptíveis de produzirem vinho. Eram o Verdelho, a Malvasia, o Boal, o Ser ciai e o Galego dourado, de que se faziam excelentes vinhos brancos, e o Sobrainho, o Bastardo e a Negra-mole, produtoras de vinhos tintos, então muito menos apreciados.

Vegetavam estas castas nas piores terras das ilhas, os biscoitos ou mistérios, terrenos recobertos de lavas esponjosas e recentes; reservavam-se as terras mais fortes para a cultura cerealífera ou para a sementeira do pastel, que foi durante dois séculos a mais remuneradora das culturas açorianas. As pedras mais ou menos soltas dos biscoitos eram revolvidas e depois dispostas em camadas niveladas, a jeito de calçadas, que se chamavam e ainda chamam «viradas de pedra». A distâncias regulares, deixavam-se covas com o solo a descoberto, onde se plantava o bacelo.

Muitas dessas viradas foram mais tarde invadidas pelo incenso (Pittosporum undulatum) e tornaram-se impróprias para a cultura da vinha; mas nos tempos antigos, as raízes das videiras estendiam-se e desenvolviam-se na terra subjacente à virada, e os sarmentos sazonavam otimamente os seus cachos ao calor reverberado pela pedraria, não havendo que recear alforras ou mangras, filoxera ou cochonilha. Durou esse estado edênico até meados do século XIX.

Por volta de 1850, chegou até nós, vinda da América, uma terrível epifitia, que assolou todos os vinhedos europeus com maior ou menor intensidade. Foi o Oídio ou Cinzeiro, moléstia causada por um fungo denominado então «Oídium Tuckeri», hoje crismado de «Uncino-la necator».

A atmosfera húmida dos Açores favorecia em alto grau o desenvolvimento a propagação do Oídio; por essa razão, e porque ainda se desconhecia o tratamento pelo enxofre, quase^todas as vinhas açorianas foram fortemente atacadas, deixaram de produzir uvas aproveitáveis, e foram pouco a pouco perecendo, queimadas por aquele fungo devastador. Restaram aqui e além pequenos núcleos de videiras, onde os ares eram mais secos, como na fajã de S. Lourenço, em Santa Maria, na freguesia dos Biscoitos na Terceira, e em certos sítios das ilhas do Pico e Graciosa.

Condenados a uma rigorosa e involuntária abstinência de vinho, os açorianos buscaram solução para tão difícil problema: —Experimentaram as videiras americanas, consideradas resistentes ao Oídio, e fixaram-se talvez em uma das piores—a Isabella, da espécie Vitis la-brusca, vulgarizada rapidamente com o nome de uva de cheiro, por causa do seu aroma peculiar, que os Americanos designam por «foxy» e lembra algum tanto o do morango, pelo que no Continente lhe chamam «morangueira».

Ou o nosso olfato, de tão habituado, se lhe tornou menos sensível, ou a uva, por adaptação ao meio, tem vindo a perder aquele aroma, que hoje nos parece menos pronunciado. Outra casta de importação mais recente, a «Niagara» ou vinha de cheiro branca, tem um aroma muito mais intenso e desagradável. A Isabella é uma videira de grande vigor vegetativo, com sarmentos delgados e compridos, entre nós longos, porte rastejante ou trepador.

As folhas são grandes, onduladas e crespas, com recortes menos profundos e mais arredondados que as da Vitis vinifera. Os cachos são numerosos, não muito grandes, com pedúnculo herbáceo que se quebra facilmente com o s dedos. Bagos medianos, redondos, de epi-carpo quase preto na maturação, polpa mole, esbranquiçada, sumarenta.

Podada curta, tem grande tendência a emitir ramos adventícios ou ladrões, e os gomos que saiem dos olhos da base da vara são quase sempre improdutivos. Convém-lhe por isso a poda de vara longa. É geralmente cultivada em parreira rasteira (vigne en chaintres), outras vezes em latadas de altura variável, com que se obtêm grandes produções; mas quanto mais alta for a latada, mais facilmente é atacada pelo cinzeiro, moléstia a que não é totalmente refractária, se bem que lhe resista muito melhor que as castas europeias. Mas se a vinha Isabella é assas resistente ao Oídio, não o é igualmente a outras doenças e parasitas que apareceram mais tarde para complicar a vida dos viticultores, tais como o Mildio, a Filoxera e a Antracnose, para só falar das principais.

 

No último quartel do século passado, um insecto devastador chegou também da América, depois de passear por toda a Europa vitícola, como um novo Átila, destruindo na sua passagem quase todos os vinhedos: — foi a Filoxera. Debalde se lhe tentou deter o avanço com o emprego do sulfureto de carbono e do sulfo-carbonato de potássio injectados no solo, ou com a inundação temporária dos vinhedos. A invasão continuou.
Não escaparam as nossas vinhas ao terrível flagelo, especialmente as plantadas em terrenos secos, os mais adequados para tal cultura; foram desaparecendo a pouco e pouco, minadas as suas raízes pela sucção de milhões de insectos quase miscroscópicos.

Surgiu então novo problema : substituir as videiras de bacelo por outras enxertadas em padrões, cujas raízes rtesistissem à Filoxera. Os cavalos americanos, empregados então na reconstituição das vinhas mortas e em novas plantações que ao depois se têm feito, ficaram conhecidos entre-nós pela designação genérica de vinha resistente. Após pacientes ensaios levados a cabo’ pelo malogrado Agrónomo José Canavarro de Faria e Maia, e outros colaboradores, reconheceram-se como mais recomendáveis para os nossos terrenos a Riparia-Rupestris 10114 de Millardet e a Rupestris de Fortworth, a primeira para solos frescos, a segunda para os mais enxutos.

Conquanto não esteja bem provada a sua resistência anti-filoxérica, generalizou-se muito ultimamente o emprego do híbrido «Herbemont», produtor directo de uvas de inferior qualidade, que o povo conhece por «Bremonte», tendo assim corrompido ou aportuguesado o nome francês. Também se recomenda a enxertia sobre a Riparia--Rupestris 3309, de Couderc.
É geralmente com enxertos de dois anos, obtidos em viveiros, que se faz a’plantação da vinha, ficando as cepas a 3 ou 4 metros de distância, em todos os sentidos.
Das antigas viradas de pedra, que dão o melhor vinho, a cultura da vinha tem vindo a alastrar-se por terrenos de melhor qualidade, capazes de produzir pão. É certo que nesses terrenos as produções são muito mais avultadas, não sendo raro atingirem 6 pipas por alqueire, correspondentes a 20 hectolitros por hectare. A qualidade ê que deixa muito a desejar. Em tais terrenos, com culturas intercalares de milho ou de batata, conseguem-se elevados rendimentos por unidade de superfície, não sem muito trabalho e despesas avultadas, pois todos os amanhos e granjeios se tornam de difícil e morosa execução, devido ao emaranhado das latadas, tão próximas do solo.

O vinho de cheiro é um líquido de côr vermelha, mais ou menos escura, chegando às vezes a ser bastante tinto, com 7 a 10 graus de força alcoólica, conforme os solos e conforme os anos. Rico em crémor--tártaro, este dá-lhe um forte sabor acidulo que, conjuntamente com o cheiro especial a rosas ou morango, o torna intolerável aos paladares não acostumados. O consumidor açoriano, porém, habituou-se-lhe de tal forma, que o prefere ao melhor vinho tinto do Continente, pagando-o às vezes por elevados preços (3 e 4 escudos o litro), como se fora o mais precioso néctar.

Em anos de produção escassa, o seu preço de custo é elevado, por ser muito dispendiosa a cultura. Felizmente para os produtores, a procura é grande e os preços elevados; há muita gente que gosta de o beber.


Silvano Pereira, 1954

 

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