Por falecimento de João Soares, segundo Capitão da ilha de Santa Maria, herdou a capitania seu filho João Soares de Sousa, segundo do nome e terceiro Capitão da dita ilha, o qual tomou o Sousa de sua mãe, D. Branca de Sousa.
E, para entendimento do que hei-de dizer, se há-de notar que, depois que seu pai, João Soares, vendeu esta ilha de São Miguel a Rui Gonçalves de Câmara, filho de João Gonçalves Zargo, primeiro Capitão da ilha da Madeira, ficando o dito Rui Gonçalves de Câmara Capitão desta de São Miguel, antre outros filhos naturais que teve, houve uma filha, chamada D. Breatiz da Câmara , a qual casou com um fidalgo de Portugal, chamado Francisco da Cunha, filho de Pero de Albuquerque, primo de Afonso de Albuquerque, Governador que foi da Índia, e de sua mulher D. Guiomar da Cunha, prima de Nuno da Cunha, que também foi Governador na Índia, onde Francisco da Cunha foi duas vezes por capitão de naus, e andou lá algum tempo em serviço de el-Rei ; o qual veio viver, com sua mulher D. Breatiz, em Vila Franca do Campo e na Ponta Garça, termo da mesma vila, onde nesta ilha de São Miguel tinha sua fazenda, mas não tanta como a sua pessoa e fidalguia convinha, pelo que, indo desta ilha a Portugal, a ter requerimentos na corte sobre o acrescentamento de sua moradia, conta o curioso cronista Garcia de Rezende, no capítulo duzentos e onze, que estando o grande Rei D. João, o segundo do nome, tão mal, que dali a duas horas faleceu, este Francisco da Cunha (que ele chama da ilha Terceira, pelo comum nome de que usam os moradores de Portugal quando falam destas ilhas dos Açores, sendo ele morador nesta de São Miguel) chegou a el-Rei dizendo-lhe que pelas cinco chagas de Jesus Cristo lhe fizesse alguma mercê, porque era fidalgo e muito pobre, e el-Rei lhe mandou com muita pressa fazer um padrão de trinta mil réis de tença e o assinou, e disse-lhe que tomasse a prata que na casa estava, que não tinha já que lhe dar; o que foi causa de se saber a grande devação que el-Rei tinha às cinco chagas de Cristo, Nosso Deus e Senhor, lá consigo só, ençarrada , em seu real peito, porque, em se saindo Francisco da Cunha, disse el-Rei aos que com ele estavam naquela agonia da morte, com que estava lidando: “Já posso agora isto descobrir; nunca em minha vida me pediram coisa à honra das cinco chagas que não fizesse”. E mandou logo saber em que ponto estava a maré e, dando-lhe a resposta, disse: “Daqui a duas horas me finarei”; e assim aconteceu, que domingo, em se querendo pôr o Sol, dizendo ele “Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere mei”, lhe saiu a alma da carne, vinte e cinco dias de Outubro do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos e noventa e cinco, em idade de quarenta anos e seis meses, dos quais foi casado com a Rainha D. Lianor, sua mulher, vinte e cinco, e reinou catorze anos e dois meses.
Este Francisco da Cunha houve uma filha de sua mulher D. Breatiz, chamada D. Guiomar da Cunha, nesta ilha de São Miguel, com a qual casou João Soares de Sousa, Capitão da ilha de Santa Maria. E houveram dantre ambos estes filhos e filhas: Pero Soares de Sousa, que herdou a casa e capitania, e Manuel de Sousa que, por morte de um homem que ele (como dizem) matou, ou por seu mandado, indo ele ao delito, mataram com uma seta, se foi da ilha e andou em Itália e França trinta e cinco anos ou mais, sem dele haver novas; e no ano de mil e quinhentos e setenta e seis, em que entraram os franceses e os cossairos na ilha, a roubar a Vila do Porto, tinha ele chegado dantes, na entrada do verão, e havendo andado todo o tempo sobredito em notáveis perigos e guerras, de que trazia muitos sinais de feridas, quando se deu o rebate da entrada dos imigos, a cinco dias de Agosto, dia de Nossa Senhora, pela manhã, acudindo ele dos primeiros para defender a Pátria, como mui esforçado cavaleiro, que era, e valentíssimo soldado velho, cursado na guerra, nos primeiros encontros dos cossairos o mataram com um pelouro de um tiro de escopeta, não longe da casa de seu pai, à vista de todos; o que parece ser juízo de Deus, que é perfeito juiz, de quem ninguém pode escapar ou tarde ou cedo.
Teve mais o dito Capitão João Soares outro filho, mui macio, brando e pacífico, além da muita virtude que tinha, chamado Nuno da Cunha, que casou nesta ilha de São Miguel com D. Francisca, filha de um nobre e rico homem da cidade da Ponta Delgada, chamado Sebastião Luís, pai de Hierónimo Luís, homem principal da mesma cidade e mui rico de fazenda, prudência e virtude; da qual houve um filho, chamado João Soares, como o Capitão, seu avô, o qual, sendo de tenra idade, estando a uma janela rasa (que, ainda então, não tinha grades, por serem casas feitas de novo), passando o Santíssimo Sacramento que se levava a um enfermo, querendo o menino olhar a gente e campainha, que vai tangendo junto com o pálio, caiu da dita janela com a cabeça para baixo e, dando nas pedras da calçada, que é uma boa altura, não morreu, inda que lhe ficou um jeito no olhar; de maneira que de todos foi julgado por milagre, e bem parece que o guarda Nosso Senhor para fazer dele um grande santo, como está mostrando seu proceder, o qual é agora de quinze anos, pouco mais ou menos . Mas seu pai, Nuno da Cunha, é falecido.
O Capitão João Soares houve mais outro filho, chamado Simão de Sousa, que faleceu na ilha, sendo de idade de dezassete ou dezoito anos. E três filhas, a primeira D. Maria, que casou com Rodrigo de Baeça, castelhano, que ainda vive na dita ilha; e ela haverá nove ou dez anos que é falecida, sem haverem filhos, nem filhas.
A segunda, D. Joana, que casou com Hector Gonçalves Minhoto, tão rico, que, se mais vivera, acabara de comprar toda a ilha e fora sua; de que houve D. Guiomar, que casou com João d’Arruda, filho de Pero da Costa, da Vila Franca do Campo, desta ilha de São Miguel, e D. Branca, que casou com Fernão Monteiro de Gamboa, de que tem uma filha, chamada D. Filipa, ainda solteira . Teve mais D. Joana de seu marido, Hector Gonçalves Minhoto, um filho, chamado Francisco da Cunha, que, por falecimento do Minhoto, seu pai, ficou muito rico e casou na ilha da Madeira com uma mulher fidalga, de boa geração e de muita virtude, de quem houve três ou quatro filhas; e, ficando muito próspero por falecimento de seu pai, depois de viver na ilha de Santa Maria estragadamente, se foi para a ilha da Madeira com sua mulher e filhas e, apartando-se lá de todos por querer fazer penitência, se foi viver junto do mar, antre umas furnas da rocha e penedia, onde pescava algum peixe, que comia, e outro que punha sobre as pedras e calhaus, que os moços iam tomar, dando-lhe alguns pedaços de pão, com o qual e algum marisco se mantinha, sem querer ver homem nenhum, nem falar com ninguém; e, se iam falar com ele, escondia-se logo antre os penedos e furnas ao longo do mar; e assim viveu penitente, com aspereza de vida, sete ou oito anos, até que faleceu, deixando na mesma ilha da Madeira três filhas suas, onde estão honradamente casadas.
A terceira filha do Capitão João Soares, chamada D. Lianor, foi freira professa no mosteiro da Esperança da cidade da Ponta Delgada, desta ilha de São Miguel, e nele faleceu.
Além de se afirmar por verdade que moveu D. Guiomar da Cunha, mulher deste Capitão João Soares de Sousa, cinco crianças juntas, da qual movedura dizem que, como anojada, morreu.
Pela qual razão, por parte da mãe, D. Guiomar da Cunha, são estes seus filhos e descendentes parentes mui chegados dos Capitães da ilha de São Miguel e liados os Capitães delas em estreito e vizinho parentesco, como as mesmas ilhas antre si são tão chegadas e vizinhas.
Por morte da Capitoa D. Guiomar da Cunha, casou segunda vez o Capitão João Soares de Sousa com D. Jordoa Faleira, filha de Fernão Vaz Faleiro e de Filipa de Resende, sua mulher, moradores na mesma ilha; e houveram de antre ambos filhos, todos muito honrados e nobres e de magníficas condições, cuja presença, prática e pessoa, de qualquer deles, mostra claramente sua fidalguia e nobreza.
O primeiro, Gonçalo Velho, que morreu no mar, indo para Lisboa a criar-se na corte, como os mais dos Capitães costumavam mandar lá seus filhos e principalmente os mais velhos.
O segundo, Álvaro de Sousa, que casou com D. Isabel, filha de Amador Vaz Faleiro, o primeiro que mataram os franceses na entrada da Vila, homem mui honrado e principal na ilha, da qual tem uma só filha, que se chama D. Jordoa .
O terceiro, Rui de Sousa, que, andando em serviço de el-Rei na Índia, foi morto em uma batalha.
O quarto, André de Sousa, que, como já atrás tenho dito, casou com D. Mécia, filha de Miguel de Figueiredo e irmã do licenciado Luís de Figueiredo de Lemos, vigairo que foi de São Pedro da cidade da Ponta Delgada e ouvidor do eclesiástico nesta ilha de São Miguel e daião da Sé de Angra e vigairo geral e governador em todo o bispado. E agora bispo do Funchal .
O quinto, Miguel Soares, que casou com D. Antónia neta de Ana de Andrade, viúva, mulher que foi de Gonçalo Fernandes.
O sexto, Belchior de Sousa, que casou com D. Maria, filha do bacharel João de Avelar, de muito magnífica condição e grande virtude.
Teve também uma filha desta D. Jordoa, chamada D. Cecília, que faleceu sendo freira professa no mosteiro de Santo André de Vila Franca do Campo, desta ilha de São Miguel.
Por falecimento de D. Jordoa, casou terceira vez o Capitão João Soares com D. Maria, filha de Nuno Fernandes Velho, e já depois dele ser muito velho, houve dela uma filha que se chamou D. Branca, já falecida, e um filho António Soares, e outro João Soares, e uma menina que também é falecida. O António Soares há pouco tempo que foi para a Índia, ficando o outro, chamado João Soares, em casa enfermo de enfermidade incurável, com sua mãe, D. Maria, que pode ser ao presente mulher de quarenta anos.
Além destes filhos legítimos, houve este Capitão quatro filhas de uma Bárbara Pires, preta, chamadas Isabel de Abreu, Hierónima de Abreu, Violante de Abreu e Joana de Abreu, e um filho, chamado João de Abreu.
E de uma Violante Álvares houve uma filha, por nome Ana de Almada. E de Isabel Ribeira dois filhos, Francisco de Sousa, que morreu de etiguidade (sic), e Simão de Sousa, que em moço se criou no mosteiro de São Francisco da Vila Franca, desta ilha de São Miguel, e, não querendo ser frade, se foi para as Índias de Castela, sem nunca mais se saber dele nova certa, ainda que alguns disseram que estava lá muito rico; e uma filha, Francisca de Sousa, que casou com um homem de Vila Franca, desta ilha de São Miguel; que somam todos, legítimos e bastardos, vinte e quatro, afora os cinco que já disse, de cujo aborto faleceu a primeira mulher, D. Guiomar da Cunha, de anojada, da qual seus descendentes tomaram o apelido da Cunha.
No mês de Maio, no ano de mil e quinhentos e vinte e dois, mandou o corregedor António de Macedo, com seus poderes, à ilha de Santa Maria, João de Aveiro, escrivão público nesta de São Miguel (que, então, servia de chançarel, por ser o chançarel Pero Gomes Freire ido a Portugal), a mandar à corte a apelação de uma sentença dada contra o Capitão João Soares de Sousa e prendê-lo por uma querela que dele se deu; e, por o dito Capitão querer ir com a apelação, foi com ela preso e no Regno se livrou. E tirou o dito João de Aveiro na dita ilha de Santa Maria algumas devassas, e, por não haver lá tabalião nem escrivão sem suspeita, a requerimento das partes e por mandado do corregedor, as foi tirar com João Vaz, licenciado, no mês de Maio, e reconciliou a Rui Fernandes, ouvidor do Capitão, com os oficiais da Câmara da dita ilha de Santa Maria, que iam com ele de São Miguel, onde se vieram a queixar ao corregedor, dizendo que o ouvidor mandara lançar pregões que ninguém obedecesse a seus mandados, deles, porque a troco de vinho vendiam as vidas dos homens, o que dizia por razão de recolherem e tirarem pelo mar pipas de vinho de um navio que vinha impedido, e os fez todos amigos.
Mandou João Soares entregar a carta da capitania nas confirmações, para se lhe haver de fazer no ano de mil e quinhentos e vinte e dois, e não se lhe fez senão depois que o requereu, e foi confirmado nela por el-Rei D. João, terceiro do nome; e feita a carta de confirmação em Lisboa por Aires Fernandes a treze de Março do ano de mil e quinhentos e vinte e sete.
Foi este Capitão João Soares de Sousa animoso homem, grande de corpo e muito grosso e de boa disposição, e dizem que em mancebo era muito ligeiro e desenvolto, preto, não alvarinho, fidalgo muito honrado e de magnífica e liberalíssima condição, em tanto que, por ser muito liberal, morreu pobre.
Não arrendava as suas terras por junto a um só, senão a muitos, repartidas, para que todos tivessem algum remédio. O rendeiro que lhe devia meio moio de trigo, se era pobre, pagavalhe com um saco dele somente. Tendo os moinhos, quase o não conheciam por senhorio deles e pagavam-lhe o que queriam. Nunca mandou citar ninguém por dívida que lhe devesse, e um ano que houve fome na ilha e esterilidade de pão mandou deitar pregão que quem quer que lhe tomasse ovelha ou carneiro do seu gado lhe tornasse a pele e a lã, e o mais lhe perdoava.
E, como bom fidalgo, fazia coisas e liberalidades como quem era, socorrendo e animando os pobres em suas necessidades; faltando-lhe, finalmente, o que dar, sobejava-lhe a boa condição e vontade; às vezes se mostrava colérico e agastado, com razão, mas durava-lhe pouco sua cólera.
Era em suas práticas muito discreto, alegre e gracioso, e, sem ser letrado, bom judicial e certo no que mandava, em tanto que sentença que ele dava por nenhum caso se achou desmanchar-se no desembargo. Parecia filósofo em muitas coisas e piloto destro em conhecer os tempos em que se havia de navegar da ilha de Santa Maria para esta de São Miguel, ou para as outras; e tanta certeza e experiência tinha disto, que nenhuns mestres, nem pilotos, partiam da ilha com batel nem barca (ainda que fosse bom tempo), senão quando ele dizia, tomando todos seu conselho, em que o achavam sempre certo, porque, como ele dizia que partissem, estava a viagem segura, e nunca se achou errar nisso. Antes dizem que uma vez partiu um sem registar com seu parecer, que era que não partisse, o qual se perdeu na viagem com tormenta; e dizem ser este o Coelho, do Nordeste, grande navegante nesta travessa, que se perdeu um dia de Santo Tomé, o qual antes de partir da ilha de Santa Maria, perguntando ao Capitão se partiria, lhe respondeu que não partisse, e detendo-se a barca alguns dias e agastando-se o mestre, e tornando-lhe a perguntar se era já tempo, respondeu o Capitão que se aviasse que não partisse; mas o mestre, estando agastado de esperar tanto, partiu-se de noite, e perguntando o Capitão por ele ao outro dia, lhe disseram que era partido, ao que respondeu dizendo que ele e todos os que com ele iam haviam de ser mortos, e assim aconteceu, que todos morreram naquela viagem. E, se afirmava o dito Capitão que cedo, de alguma navegação, havia de ir navio à ilha, ou fosse da ilha da Madeira, ou desta de São Miguel, ou de outras partes, que ele logo particularmente nomeava, pela experiência que tinha dos tempos que corriam ao longe, sem falta assim acontecia como ele dizia.
Depois de velho, foi mui sujeito aos filhos, e doente de parlezia perto de quatro anos, antes que falecesse; e falava mal, estando quase todo este tempo em cama. Às vezes se alevantava, às vezes se deitava, e da mesma doença, com a fala assim torvada até acabar, faleceu a dois dias de Janeiro da era do Senhor de mil e quinhentos e setenta e um anos, sendo de idade de setenta e três, muito amigo de Deus, havendo sido travesso em sua mocidade. Foi enterrado, com grande sentimento de todo o povo (que muito o amava, mais como pai que como senhor e capitão), na capela-mor da igreja principal de Nossa Senhora da Assunção, junto da porta da sanchristia, com a primeira e segunda mulher que teve, fazendo seu corpo perpétua companhia na morte às que em vida teve por fiéis companheiras.