Como o Capitão Pero Soares de Sousa viu a força e número dos imigos e a Vila deles possuída, logo no mesmo domingo fez esquipar um barco, que estava varado a Sant’Ana, e mandou nele um seu cunhado, Rodrigo de Baeça, castelhano de nação, que fora casado com uma sua irmã, a esta ilha de São Miguel pedir socorro. E, chegando ele à segunda-feira seguinte, às duas horas depois de meio-dia, à cidade da Ponta Delgada, desta dita ilha de São Miguel, deu a triste nova ao Capitão Manuel da Câmara, o qual, no próprio dia e hora, mandou logo com muita pressa chamar alguns dos principais homens da dita cidade, antre os quais foram Francisco de Arruda da Costa e o Grão-capitão Francisco do Rego de Sá, João de Melo, fidalgo, André Botelho, Baltazar Rebelo, Pero Álvares, cunhado do corregedor Manuel Álvares; o seu ouvidor; o dr. António de Almeida e o licenciado Gaspar Leitão, juiz de fora, Simão do Quental, sargento-mor desta ilha de São Miguel e capitão do número de Sua Alteza, Cristóvão de Crasto, também capitão do número de Sua Alteza, Francisco Dosouro (sic) , que fora sargento-mor desta ilha, Diogo Lopes, feitor que fora de Sua Alteza, e outros nobres e honrados cidadãos. Os quais, todos juntos em conselho, foram de parecer que com toda a brevidade se socorresse a ilha de Santa Maria.
E perguntando o Capitão-mor Manuel da Câmara a Simão do Quental, sargento-mor, quem levaria a gente a seu cargo, disse ele que ninguém a podia levar melhor que ele, pois o entendia bem, e que para o tal tempo e ocasião que estava oferecido e esperava o honrasse, dando-lhe o que tanto desejava. E não lhe respondendo o Capitão-mor a seu propósito, por certos inconvenientes, elegeram a Francisco de Arruda da Costa por capitão-mor do socorro.
Com a qual eleição desesperado o sargento-mor Simão do Quental do que pedia, pretendeu buscar alguma invenção proveitosa, para que em tal ocasião pudesse mostrar os desejos que tinha de servir a Deus e a seu Rei; e, entendendo que o socorro não era possível fazer-se prestes em menos espaço de dois dias, disse ao Capitão-mor Manuel de Câmara que a Vila se tomara ao domingo, quando todos dormiam, e os moradores dela não podiam fazer mais que fugir com as calças nas mãos, e que forçadamente deviam de ter as armas perdidas e a gente havia de andar escondida e espalhada pelos matos por não ter com que se defender, e que o socorro, que esperavam desta ilha, não era poderoso, para que, sem mais ajuda, se pudesse livremente dar batalha aos franceses, pelo que a ele, sargento-mor, lhe parecia bem (porque entendia que o melhor da guerra era soprar e comer e, assim, o requeria a ele Capitão-mor que à própria hora lhe mandasse dar arcabuzes, pólvora e pelouros para se partir logo no barco que trouxera a nova, somente com seu tambor e um filho, chamado António do Quental, para ajuntar e armar a mais gente que pudesse e tê-la em ordem, para que, quando chegasse o socorro, todos juntos melhor e mais seguramente pudessem tomar vingança daqueles hereges, que tão profanadas tinham as igrejas de Deus e saqueada a Vila, com algumas mortes dos vizinhos dela.
Este parecer do sargento-mor foi aprovado por bom pelo Capitão Manuel de Câmara e por todos os mais que ali estavam presentes, ainda que não por todos, como é costume acontecer em ajuntamento de muitos e diversos juízes; e na mesma hora, sem dilação alguma, foram dados os arcabuzes, pólvora e pelouros que pedia, com que logo se embarcou com muita diligência na segunda-feira à tarde, somente com Rodrigo de Baeça, que trouxera o recado, e com um filho seu, e os barqueiros que remavam o barco, e com o seu tambor. E navegando aquela noite, como convinha a soldado, deu-lhe Nosso Senhor tal viagem que à terça-feira, meia hora antes de amanhecer, desembarcou em Sant’Ana, da parte do Norte, uma légua donde os imigos à parte do Sul estavam.
Antes de chegar o sargento-mor, entretanto que o foram chamar e ele foi, havia sucedido que os cossairos tinham mandado pedir ao Capitão-mor da ilha de Santa Maria cinquenta vacas e vinte porcos e trinta carneiros, ameaçando, se lhos não mandasse, que haviam de pôr fogo à Vila e às igrejas, ao que respondeu o Capitão que as cinquenta vacas não era possível mandar-lhas, pelas não haver em terra tão pobre, mas que lhe daria trinta, que eles aceitaram; e o Capitão mandou começar de ajuntar e mandar poucas e poucas, para com isto os entreter até chegar o socorro que esperava. E dizem alguns que também lhe mandaram pedir mulheres para lhe amassar pão e fazer biscoito, ao que o Capitão respondeu que não podia ser, por as mulheres haverem medo deles e não quererem ir, e suspeita-se que, se as mandaram pedir, foi por se assegurarem do arreceio que tinham de lhe vir algum socorro, entendendo que, se lhas mandassem, o não esperavam e podiam, então, estar seguros.
Chegado neste tempo o sargento-mor a Sant’Ana (como tenho dito), a primeira coisa que fez foi informar-se donde estava o Capitão-mor da ilha, Pero Soares de Sousa, e de uns pescadores soube estar daquele porto, onde desembarcara, uma légua, à vista dos imigos, com cem homens, pouco mais ou menos; e sabida esta verdade, lhe mandou logo recado que por nenhum caso deixasse passar pessoa alguma aonde estavam os contrários, e para isso pusesse todas as vigias necessárias para que não tivessem aviso do socorro que lhe ia de São Miguel, o que o Capitão-mor fez com muita diligência. E logo, com toda presteza, se carregou dos arcabuzes, ele e os barqueiros, com os mais que ali pôde ajuntar, que seriam, por todos, dez ou doze homens; todos carregados das mais munições começaram de marchar para onde estava o Capitão-mor da dita ilha.
E sabendo esta nova pela terra por onde passava, lhe começaram de acudir algumas pessoas que andavam abscondidas pelos matos, e não menos espantados que desarmados, aos quais animando o sargento, lhes dava armas com que se defendessem.
Caminhando desta maneira, chegou à vista dos imigos até à ermida de Santo Antão, que está acima da Vila pouco espaço, onde achou o Capitão-mor, de que foi recebido com muito gasalhado e devida cortesia, e logo mandou deitar bando que todos lhe obedecessem como a sua própria pessoa.
Achou-se o sargento-mor, com a gente que foi ajuntando e com a que tinha o Capitão-mor, com duzentos e cinquenta homens armados; e uns diziam que somente eram desembarcados na ilha cem arcabuzeiros franceses, outros que trezentos. E visto pelo sargento-mor quão temorizados andavam os moradores da ilha, temendo não quisessem pelejar, retirou a gente atrás em parte oculta, onde não fosse vista dos imigos, e ali a pôs em ordem, feito seu esquadrão conforme à gente e sítio do campo, com tenção (se não quisesse pelejar) de aguardar pelo socorro, e, se com prontas vontades o quisessem fazer, não esperar que outro fosse ganhar a honra naquela empresa, que ele antre as mãos tinha.
E, depois de posta a gente em ordem, lhe fez uma prática, como bom e discreto soldado veterano e homem experimentado em coisas semelhantes, dizendo-lhes claramente a vontade que tinha, ainda que estrangeiro, de morrer por seu Deus e por seu Rei, e por eles, em tão justa guerra, dando-lhes a entender quantas mais razões tinham eles de fazer o mesmo, pois lhe tinham sua própria pátria usurpada e saqueada, e viam arder suas próprias casas, com mortes de seus pais, irmãos e parentes, prometendo-lhes que iria diante quanto eles quisessem, animando-os todo o possível. Mas não abastou coisa nenhuma a persuadi-los que quisessem usar de alguma virtude das armas, porque os mais calaram, pondo os olhos no chão; e, ainda que havia antre eles alguns de valorosos ânimos, não abastavam sós resistir à força dos contrários, dizendo-lhe também o vigairo Baltazar de Paiva que não lhe parecia bem ir logo com aquela gente dar nos contrários, porque arreceava que só o deixassem.
Depois disto, lhe fez o dito sargento-mor outra prática, pedindo-lhe muito por mercê a todos se animassem e, já que não queriam ganhar de dia as honras perdidas, não quisessem que ficasse em perpétua memória dizerem os da ilha de São Miguel que, se eles não foram, viveram toda a vida desonrados, e que muito melhor lhes vinha ganharem eles por suas próprias mãos o perdido, para se desculparem com Deus, e com Sua Alteza, e com o mundo, que aguardar ajuda de outra parte, não a havendo mister, porque eram duzentos e cinquenta contra cem velhacos e hereges, porque ele não tinha para si que mais fossem; pondo-lhe diante que, se não queriam pelejar de dia, que à quarta-feira, de madrugada, uma hora antemanhã, os poria em ordem de uma encamisada, com que sem perigo nenhum os tomariam às mãos. Tão pouco quiseram os da ilha aceitar este partido, por verem estar já o mau recado feito, e, pois que tinham suas fazendas perdidas e roubadas, não quiseram aventurar as vidas pelo que não podiam, nem esperavam, já cobrar. O que visto pelo sargento-mor, ficou tal qual pudera ficar outro tão bom soldado de vinte anos de soldadesca, que tinha jubilado, e, vendo não ter outro remédio, determinou, desesperado, esperar o socorro.
Neste tempo, fugiu um negro de um Manuel Fernandes Faleiro, homem dos principais da terra, para os cossairos, de quem souberam como o sargento-mor era entrado e estava aguardando o socorro da ilha de São Miguel. E logo da Vila saíram perto de quinze ou vinte arcabuzeiros franceses para subirem aos Fachos, que é o mais alto da ilha, e daí vigiarem o socorro, que se esperava, para saírem a tomá-lo no mar. Mas o sargento-mor, entendendo o que podia ser, com muita diligência lhe saiu ao passo, com outros tantos arcabuzeiros valentes e escolhidos, e os fez tornar a recolher à Vila; e, tornando-se a Santo Antão, onde estava o Capitão-mor com trinta ou quarenta homens à vista dos imigos, e ajuntando-se todos, viram sair da Vila obra de cento e cinquenta franceses, todos arcabuzeiros, em um esquadrão fechado, os quais contou o vigairo Baltazar de Paiva, estando detrás da ermida de Santo Antão, a cavalo, onde se deixou ficar para este efeito de ver o número dos contrários; e iam para onde eles estavam. E como o sargento-mor tinha a mais gente de Santo Antão pouco mais de um tiro de arcabuz, deixando encarregado ao Capitão-mor que entretivesse com aquela gente os imigos, enquanto pusesse o esquadrão em ordem de investir com eles, porque entendia que forçadamente haviam de pelejar, e, logo a toda a pressa correndo, foi poor (sic) a gente da maneira que em tal tempo convinha à honra de um soldado veterano. E, piedosamente, acabava de os poor em ordem, quando o Capitão-mor, não podendo resistir aos imigos, se ia retirando para onde o sargento estava, seguindo-o os contrários às arcabuzadas, e descobrindo a gente e vendo-a em ordem de guerra, se detiveram por espaço de uma Ave-Maria, e logo começaram de caminhar por diante e escaramuçando, como soldados práticos na guerra. E espertando o sargento-mor a gente, pedindo a todos que não tirassem até que não chegassem mais perto e ele o mandasse, e tirando e arremetendo fosse tudo uma coisa, animando-os com palavras conformes ao tempo, eles, como bisonhos na arte militar, não querendo dar por o que lhes ensinava, tiravam os seus arcabuzes por espantar aos contrairos.
E como o sargento-mor andava diante de todos dez ou doze passos, estando dos imigos um tiro de pedra de mão, afligindo-se muito a gente, perguntaram o que haviam de fazer e ele lhe respondeu que cada um fizesse como visse que ele fazia. E, logo, dizendo isto, diante de todos arremeteu aos imigos, seguindo-o e acompanhando-o alguns mais esforçados da ilha, que juntamente arremeteram com ele contra os contrários, os quais se retiraram atrás cinco ou seis passos, mas logo tornaram a carregar sobre o sargento-mor, com que se afastou a gente algum tanto atrás, o que vendo o sargento, pediu a todos que o quisessem seguir e, pondo diante seis ou sete homens que lhe pareciam mais esforçados, animando a todos, tornou a arremeter com os imigos, os quais se tornaram a retirar, como de princípio, e tornando outra vez sobre o dito sargento-mor, andando já com eles quase baralhado, seu filho lhe pegou de uma manga da cajaca (sic) e lhe disse que se tivesse, porque a gente o não seguia. Olhando, então, ele para trás, viu-se de todos desamparado, pelo que lhe foi necessário ser tão valente pelos pés como soía sê-lo na guerra pelas mãos, e, chegando aos seus, com palavras e rogos os fez deter e alguns deles detrás de umas paredes baixas, cobertas de silvas, donde se defenderam dos imigos por espaço de uma hora; os quais, tornando-se a retirar à Vila, de caminho puseram fogo à ermida de Santo Antão, mas não ardeu dela mais que um pedaço do retábulo e as portas, porque, como eles foram mais abaixo, lhe acudiram os da terra, que iam carregando sobre eles às arcabuzadas até junto da Vila, e quiseram passar mais adiante, mas o sargento-mor o não consentiu, temendo haver dentro nela alguma cilada. À entrada da qual ficaram perto de cinquenta dos imigos, tendo rosto aos da terra, jogando as arcabuzadas de parte a parte até noite; os mais, assim como foram de cima, se embarcaram logo, querendo-se a este tempo já encobrir o Sol, e os outros, que ficaram ao longo de uma parede, como anoiteceu, fazendo lume e pondo umas pedras sobre outras sobre a parede, para que parecessem as suas cabeças (como na verdade o pareciam, e por tais as julgaram os da terra) e pondo também sobre elas os morrões acesos, para parecer que estavam ali presentes, se absentaram a todo correr e foram embarcar; os quais ouvindo um tiro de arcabuz que um de dois homens da terra atirou, foi o seu medo tal que, com ele e a pressa que levavam, se virou o barco com eles, onde lhe ficaram debaixo do mar algumas poucas coisas, que adiante direi, que se acharam ao outro dia pela manhã, que era quarta-feira, oito dias do mês de Agosto.
Antes disto, tinham já lançados todos os batéis ao mar, senão este, que ficou alagado pela pressa da embarcação, e uma caravela, mas as outras levaram consigo.
Saquearam estes cossairos a Vila de tal maneira no domingo, segunda e terça-feira, até a noite dela, que se embarcaram, que se não restaurará tão cedo, por ser já agora a terra mui pobre.
Nas igrejas fizeram muito dano; roubaram tudo o que acharam de ornamentos; somente uma vestimenta quotidiana, por acerto, e a prata, ficou pela indústria do tesoureiro, que primeiro a tirou. E levaram uma custódia (como já disse), que estava fechada na caixa do Santo Sacramento, e um cálice de uma capela que estava em um almário, e quebraram algumas cruzes e imagens de pau e a porta do sacrário, de que se dantes tirou o Santo Sacramento pelo bom acordo e diligência do vigairo.
Na mesma igreja parrochia (sic) usaram de muitas descortesias e sujidades, porque nela dormiam muitos, e comiam, e faziam o que mais queria sua maldade. E o mesmo fizeram nas ermidas. E por zombar (como contavam dois ou três velhos, que estavam na Vila forçados), vestiam as sobrepelizes dos sacerdotes e meteram um furão dentro em um açafate, à maneira de cofre, com a cabeça fora por um buraco que fizeram na coberta de cima, e assim contrafaziam a procissão do Santo Sacramento. Na companhia deles dizem que vinha um ingrês, que havia já vindo à ilha a comprar urzela, o qual foi o que lhe mostrou a entrada, pela ter já dantes sabida e vigiada, porque andara muito devagar vendo todos os portos da terra, quando nela estivera.
Morreram, nos encontros que houve com os imigos, dos da terra dez homens, e feriram onze, e um dos feridos foi António Fernandes, escrivão dos órfãos, natural desta ilha de São Miguel, que foi dos que atiraram com o tiro na primeira entrada e sempre se achou na dianteira em todos os encontros, como homem esforçado.
Dos imigos também se suspeita que morreram alguns, mas não se achou rasto de mortos, senão de um só que o mar lançou fora, atravessado pelo peito de uma arcabuzada, porque outros morreram e alguns da ilha viram matar, mas logo os iam aboiar no mar por não serem vistos dos da terra. Feridos foram muitos, porque as mais das casas da Vila ficavam cheias de estopadas e fios, e, principalmente, a do vigairo, por ser mais chegada ao porto, e os colchões e lençoens (sic), que ficaram todos cheios de sangue.
Além de embarcarem da Vila quase tudo o que nela havia, levaram os tiros, que eram quatro, dois falcões pedreiros e dois berços, que el-Rei tinha dado havia pouco tempo. Os sinos ficaram (parece), por não terem tempo de os tirar, mas levaram uma campainha, que estava no coro, e um sino pequeno da casa da Misericórdia.
Como tenho dito, estas naus eram duas, uma muito grande, de quinhentos tonéis, a outra mais pequena, de trezentos; a lancha seria do tamanho de uma fusta de doze bancos. Podiam vir nelas até quatrocentos homens, pouco mais ou menos, ainda que eles afirmavam que vinham seiscentos, por trazerem gente de outras naus que se perderam na Flórida, que a armada de Castela metera lá no fundo, e que aquelas escaparam, por serem melhores de vela, e a maior era capitaina de toda a armada.
Isto mesmo contava um negro, que vinha em sua companhia, e também se soube depois que esta armada fora desbaratada, na Flórida, da armada de Castela, e que estas duas naus escaparam. A qual armada se suspeita que saiu de um porto de França, que se chama Abra Nova, e que era de um senhor dali perto, mas escravo do interesse e capitão do demónio; alguns dizem que se chamava Corneles, e outros Sansão .
Sendo certificado depois a el-Rei da boa diligência que o sargento-mor Simão do Quintal (sic) neste socorro tivera, lho agradeceu muito e lhe mandou dar quarenta cruzados, de que lhe fez mercê, e doze mil réis de renda, que são de ordenado de capitão do número, que ele estimou em muito, por valer mais a honra que o proveito.