No tempo do falecimento do quarto Capitão João Roiz da Câmara, estava na Corte seu filho mais velho, Rui Gonçalves da Câmara, que Ihe sucedeu na capitania e foi quinto Capitão desta ilha de São Miguel, segundo do nome. E por ficar de pouca idade, governou por ele seu tio, Pero Roiz da Câmara, até o ano de mil e quinhentos e quatro. Em vida de seu pai já era casado, no Reino, com D. Filipa Coutinha, filha de Lopo Afonso Coutinho, irmão do conde de Marialva, que casou uma filha com o Infante D. Fernando, irmão de el-Rei D. João, terceiro do nome, dos Coutinhos do Regno, que dizem terem este apelido, porque procederam de um alferes de uma bandeira, que andando em uma batalha, levavam os imigos aos seus de vencida, o que vendo ele, metendo-se na envolta também a pelejar, e apegando alguns contrairos com ele para Ihe tomar a bandeira, ele aferrou nela de tal modo que, ainda que Ihe cortaram ambas as mãos, Iha não puderam tirar dos braços, e tornaram a ter vitória, a qual alcançada, quando o capitão o viu sem mãos e com a bandeira, Ihe perguntou com que tivera mão nela, já que não tinha mãos; ele respondeu que com os cotinhos dos braços a tivera.

Daqui veio ele e seus sucessores terem este apelido de Cotinhos, que outros dizem Coutinhos, fazendo-lhe el-Rei entre outras mais mercês esta dele.

Era esta Capitoa D. Filipa Coutinha dama da Excelente Senhora, e daí casou; foi recebida em casa de D. Gastão, seu tio, com o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara, que foi de mediana estatura, mas bem proporcionado; era gentil homem, de rosto bem assombrado e muito grave, no que bem representava o ser de sua pessoa e o cargo que tinha, e dotado de todas as boas partes, em especial muito largo de condição, amigo de seus criados e assim os teve muito honrados e ricos, porque o eram seus pais naquele tempo. O qual sabendo do falecimento do Capitão, seu pai, se veio na era de mil e quinhentos e quatro anos, pouco mais ou menos, com a dita D. Filipa Coutinha, sua mulher, para esta ilha, a tomar posse da capitania, onde a esteve governando alguns anos com muita prudência, paz e quietação.

Mas como a não há neste mundo não faltaram invejosos ou agravados dele, que o inquietassem, porque o contador Martim Vaz Bulhão, com que teve dúvidas, e um Frei Bartolameu , então ouvidor do Eclesiástico nesta terra, João d’Outeiro, cavaleiro do hábito de Cristo, sogro de D. Gilianes da Costa, Simão de Santarém, freire do hábito de Aviz, escrivão na mesma vila, Luiseanes, cavaleiro do hábito de Santiago, genro de Gonçalo Vaz, o Velho, Francisco da Cunha, fidalgo, marido de D. Beatriz, filha natural do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, primeiro do nome, todos moradores em Vila Franca, e João Fernandes Examinado, pai de João Álvares Examinado, da Alagoa, por diferenças de uma demanda que teve com ele, e outros que se ajuntaram na mesma consulta, fizeram a el-Rei capítulos dele. Uns dizem que por causa dumas escrituras que desapareceram, outros que por causa de mulheres, outros que por recolher homiziados em sua casa.

Tão importunado se viu el-Rei que o mandou ir emprazado à Corte, pelo que foi forçado ir-se desta ilha, da qual levou consigo muitos homens, fidalgos, nobres e honrados, dos principais da terra, seus amigos que, às suas próprias custas de cada um, o quiseram acompanhar naquela trabalhosa jornada, que dizem ser: Sebastião Barbosa, o Velho, grão dizedor, e seu filho Hector Barbosa, Jorge Nunes Botelho, Diogo Nunes Botelho, Pero de Teive, Rui Gonçalves e Gonçalo Vaz, filhos de João Gonçalves Botelho, do lugar de Rosto de Cão, Álvaro Lopes, o Velho, de Santo António, Pero Roiz Raposo e Diogo Roiz Raposo, filhos de Rui Vaz Gago do Trato, Estêvão Álvares de Rezende, João Álvares do Sal, João Roiz Badilha, Pedralvres Benavides, da Ponta Delgada, Diogo Dias Brandão e João da Grã, de Vila Franca, Rui Tavares e Gonçalo Tavares, irmãos, Baltasar Vaz de Sousa e João do Penedo, da Ribeira Grande, Guterres Lopes, Pero Manuel, Estêvão de Oliveira, Gaspar Pires Carvalho, de Água do Pau, Vasco de Medeiros, Fernão Lopes de Frielas, João Roiz, da Alagoa, pai de Manuel Roiz, vigairo dos Fenais da Maia. E outros a que não soube os nomes partiram desta ilha na era de mil e quinhentos e dez, pouco mais ou menos.

E chegando à Corte foi despedido por el-Rei, com os que levava em sua companhia, caminho de África, aonde foi ter a Tânger, e estando ali alguns meses, sabendo el-Rei D. Manuel que el-Rei de Fez, movido das afrontas que Ihe cada dia os fronteiros faziam, determinava de ir cercar outra vez a Arzila, com muita gente e munições de guerra ; entre outros fronteiros que nela então se acharam foi este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara que, de Tânger, donde estava por mandado de el-Rei, se foi a Arzila, por Iho el-Rei assim mandar por uma carta, levando consigo quarenta de cavalo, desta gente nobre que tenho dito, e cinquenta besteiros e outros homens de pé, onde esteve alguns meses até se alevantar o cerco, como acima disse. E por todo o tempo esteve em África um ano, que foi o de mil e quinhentos e onze, pouco mais ou menos.

E o dito cronista Damião de Goes no capítulo terceiro da terceira parte da Crónica de el-Rei D. Manuel diz que estas e outras coisas aconteceram na era de mil e quinhentos e nove e mil e quinhentos e dez e mil e quinhentos e onze, pelo que não se pode entender que fosse este Capitão Rui Gonçalves o terceiro Capitão desta ilha, primeiro do nome, como se diz na relação dos Capitães da ilha da Madeira; pois esse e seu filho João Gonçalves ou João Roiz, que Ihe sucedeu na capitania, já então eram ambos falecidos e já era, nestes anos sobreditos, este Rui Gonçalves da Câmara quinto Capitão desta ilha de S. Miguel, segundo do nome, neto do outro Rui Gonçalves da Câmara, a que alguns sem razão queriam atribuir o sobredito socorro.

E em África fizeram os naturais desta ilha muitas cavalgadas, no tempo que lá estiveram acompanhando seu Capitão, que foi um ano inteiro, onde todos foram armados cavaleiros.

Depois do Capitão fazer estes serviços um ano à Coroa, em África, se veio à Corte com sua gente, bem concertada e muito lustrosa, a beijar a mão a el-Rei D. Manuel, onde, pelos capítulos que dele haviam dado, saiu a sentença contra ele, por onde perdeu a jurdição e capitania, o que vendo ele se deixou andar na Corte seis anos em que veio criar estreita amizade com Jorge de Melo, monteiro-mor, com o qual se concertou que Ihe daria seu filho, Manuel da Câmara, para casar com D. Joana de Mendonça, sua filha, e que Jorge de Melo Ihe entregaria a jurdição e capitania perdida; o que cumpriu daí a pouco tempo, porque uns dizem que um dia ao jantar, outros que uma noite, véspera da festa de Natal, estando o Capitão Rui Gonçalves da Câmara jantando ou consoando, Ihe mandou Jorge de Melo entre dois pratos, por dois criados, a sua jurdição, dizendo que aquela iguaria Ihe mandava Jorge de Melo, com o que Ihe acabou de confirmar também de sua parte a promessa feita, de casar seu filho com sua filha, sem a Capitoa D. Filipa ser sabedora, nem ser contente no tal casamento depois que o soube; mas isso não foi parte para deixar de haver efeito, como houve. E depois contarei, quando tratar do dito Manuel da Câmara, que sucedeu a seu pai Rui Gonçalves da Câmara, na casa e capitania.

Havida a jurdição pelo modo sobredito, tendo feito de custo, nestas idas de Portugal e de África e estada na Corte, perto de vinte mil cruzados, se veio, no ano de mil e quinhentos e dezassete, muito endividado, o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara para esta ilha, onde foi recebido no porto de Vila Franca, quando desembarcou, com muita festa e procissão solene e levado à igreja Matriz do Arcanjo S. Miguel, onde deu muitas graças a Deus, por o trazer livre de tantos trabalhos. Mas os que fizeram os capítulos, não se tendo por livres, cobraram carta de immizidade contra ele, para que não entendesse em seus casos, nem se antremetesse em coisas suas. E nos sete anos que esteve absente, seu tio, Pero Roiz da Câmara, governou a capitania por ele.

Teve este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara de sua mulher, D. Filipa Coutinha, três filhos, Simão Gonçalves da Câmara, Manuel da Câmara e João de Sousa, e duas filhas, D. Hierónima e D. Guiomar. Também teve um filho natural, chamado Miguel da Silveira. Simão Gonçalves da Câmara, o mais velho, morreu mancebo, antes do dilúvio de Vila Franca; todos os mais faleceram no mesmo dilúvio, tirando Manuel da Câmara que não se achou aquela noite na dita vila, como direi adiante.

Procurou este Capitão, em seu tempo, dar lustro a esta ilha, atraindo a si muitos homens honrados, fazendo-lhe todas as honras e favores possíveis. Alguns dizem que ele mandou vir a semente de pastel, de Tolosa, de França, e muitas aves e árvores diversas. E assim mandou fazer o mais rico pomar de toda a ilha, na sua quinta do Cavouquo onde tinha uma fonte de água, além de muitas árvores de espinho de toda a sorte que nele havia; não faltavam grandes castanheiros e nogueiras que davam muitas nozes e castanhas, pereiros e pereiras, de que se colhiam em seu tempo infinidade de peros e outras frutas, e esquisitas árvores que com muita curiosidade mandava vir de remotas terras. Fez também, na vila de Alagoa, uns fortes e ricos paços de grão casaria, com compridos esteios de cerne por dentro das paredes, até o sobrado, para assim ficarem mais seguros contra os contínuos terramotos que nesta terra então havia; os quais paços, ainda que estão quase arruinados, mostram a magnificência e grandeza de quem os mandou fazer. Depois os fez consertar o conde D. Rui Gonçalves da Câmara, seu neto. Fez também a quinta do Cavouquo que, por honra de seu autor, deveram de acrescentar e conservar seus ilustres sucessores, já que pelo proveito e refresco, que destas coisas colheriam, o não fazem. Mas a causa disto é por nesta ilha, que é sua morada, serem hóspedes e lá no Reino terem seu principal assento, de que fazem mais cabedal.

Mandou também fazer um formoso galeão e bem artilhado, com que se servia das coisas do Reino e de outras partes, quando Ihe era necessário.

Mandou este Capitão em seu tempo fazer muitas atafonas na vila da Ponta Delgada, junto do mosteiro de S. Francisco e abaixo da igreja paroquial de S. Pedro, por aliviar a opressão que o povo padecia em mandar fazer as farinhas aos moinhos da vila da Ribeira Grande, que estavam longe. Mandou trazer de Portugal codornizes e coelhos, que multiplicaram muito.

Também mandou trazer perdizes, que se perderam.

Porque João de Melo, irmão do dito Capitão, se foi desta ilha, sendo mancebo, fazer frade da ordem de S. Bento, no mosteiro de S. Bernardo em Portugal, e nunca fez partilha nem pediu sua parte ao dito Capitão, depois da morte de seu pai e mãe; falecendo o dito João de Melo, mandou o prelado daquele mosteiro onde ele professou arrecadar a fazenda que Ihe cabia da sua herança, havendo-a por sentença julgada, a qual dizem que montaria mil cruzados, pouco mais ou menos. Veio o Capitão a pagar e entregar tudo, uns dizem que ao procurador do mosteiro, outros que, por João Pardo, homem nobre, veador de sua casa e seu ouvidor muitos anos, enviava os mil cruzados em dinheiro e juntamente muitas peças de ouro e prata e móvel rico de casa, como foram duas baixelas de prata branca e outra dourada, um cavalo muito formoso, três ou quatro pipas de cadeiras de estado com a guarnição de veludo e outras coisas a seu filho Manuel da Câmara que estava no Reino, e por isto e a contia da dívida fazerem muita soma, ou por ele o pagar de má vontade, que Ihe deu trabalho a juntá-lo, pelo tomar em tempo que ainda não tinha acabado de sanear as feridas dos vinte mil cruzados que gastara em África e no Reino, recolhendo-se depois de jantar a descansar em seu leito, deu a alma a Deus que a criou, sem mais estrondo nem rumor da morte trabalhosa. E não faltou quem dissesse que morreu assim agastado de se Ihe cobrir o coração pelo dinheiro que entregou. Mas o certo é que acabou como acabaremos todos. A Capitoa D. Filipa, vendo que era tarde, o foi acordar por não dormir tanto, e achando-o com o sono da morte, se tomou a casa, e a vila da Ponta Delgada e depois a ilha em redondo, toda um grito e pranto, pela perda de tal senhor.

Era de idade perto de sessenta anos, ao menos dos cinquenta e cinco para cima, dos quais governou a capitania trinta e três anos.

Foi sepultado na capela-mor do mosteiro de S. Francisco. Tinha ele e a Capitoa D. Filipa feito juntamente um testamento em que mandaram fazer muitas obras pias aos vinte e nove de Janeiro de mil e quinhentos e vinte e quatro anos, em que nomearam por herdeiro a seu único filho Manuel da Câmara e o mesmo e seus descendentes deixaram também por testamenteiros. Mandou dar largas esmolas a pobres envergonhados e vestir logo doze, e dizer muitas missas, anais, capelas e trintairos , e algumas cantadas, em cada um ano para sempre, e que do remanescente de sua terça o seu testamenteiro tirasse cada um ano dois cativos de terra de mouros, os mais desamparados e sem remédio que achasse.

A Capitoa D. Filipa foi sempre muito virtuosa e de muitas esmolas, e discreta em saber repartir. Afeiçoada a pessoas virtuosas e religiosas, folgava de falar com pessoas discretas, pela qual razão falava com poucas mulheres; era de grande autoridade na pessoa e na fala, muito caridosa com os enfermos de sua casa e de fora, de tal modo, que pelo mais pequeno negrinho de sua família, gastara liberalmente toda sua fazenda para Ihe dar saúde; havia de ver fazer as mezinhas que se ordenavam para os seus doentes. Não queria ouvir dizer mal de ninguém. Se no povo, ou entre oficiais de justiça, ou religiosos, havia discórdias, procurava pôr paz. Tinha cada dia, antes de comer, sua oração secreta diante de um retábulo onde estava um crucifixo, em que chorava muitas lágrimas. Todos os dias ouvia missa que mandava dizer em sua casa e sempre teve capelão até que faleceu. Quando era casada, mandava fazer muitos vestidos afim de os dar por amor de Deus, o que fazia secretamente.

Fez de sua terça a maior parte do mosteiro da Esperança, na vila da Ponta Delgada, em que recolheu as freiras de Vale de Cabaços, da vila de Água do Pau, em uma terra que Fernão do Quintal e sua mulher deram para se fazer o dito mosteiro; e depois fez umas casas encostadas a ele, em que morou viúva muitos anos, e por sua morte Ihas deixou. Depois do mosteiro acabado, fez tresladar os ossos de seu marido para a capela dele. Recebeu os sacramentos necessários antes de seu falecimento com dizer muitas palavras devotas e discretas, que em sua enfermidade sempre teve; faleceu de idade mais de oitenta anos, dia de Janeiro de madrugada, acabando o ano de mil e quinhentos e cinquenta e entrando o de cinquenta e um. Foi enterrado seu corpo, vestido no hábito de Santa Clara, na sepultura do Capitão seu marido, no mosteiro das Freiras da Esperança, onde mandam cantar dois anais. Mandou dizer muitas missas e trintairos, aprovando o que seu marido e ela mandaram em o testamento que ambos ordenaram.

Fizeram-se solenes ofícios por sua alma. Deixou as casas em que vivia, junto do mosteiro da Esperança, e dois moios de terra no termo da vila da Alagoa ao mesmo mosteiro, por trinta e tantos moios de trigo que Ihe tornou na Salga, da Achada dos Fanais da Maia, para dar a seu filho Manuel da Câmara, que ficou por administrador e testamenteiro, a qual terra rende para sempre dois moios de trigo cada ano. Foi sentida sua morte de todo o povo e muito mais de muitos pobres que ela com suas esmolas sustentava.

No tempo do falecimento do quarto Capitão João Roiz da Câmara, estava na Corte seu filho mais velho, Rui Gonçalves da Câmara, que Ihe sucedeu na capitania e foi quinto Capitão desta ilha de São Miguel, segundo do nome. E por ficar de pouca idade, governou por ele seu tio, Pero Roiz da Câmara, até o ano de mil e quinhentos e quatro. Em vida de seu pai já era casado, no Reino, com D. Filipa Coutinha, filha de Lopo Afonso Coutinho, irmão do conde de Marialva, que casou uma filha com o Infante D. Fernando, irmão de el-Rei D. João, terceiro do nome, dos Coutinhos do Regno, que dizem terem este apelido, porque procederam de um alferes de uma bandeira, que andando em uma batalha, levavam os imigos aos seus de vencida, o que vendo ele, metendo-se na envolta também a pelejar, e apegando alguns contrairos com ele para Ihe tomar a bandeira, ele aferrou nela de tal modo que, ainda que Ihe cortaram ambas as mãos, Iha não puderam tirar dos braços, e tornaram a ter vitória, a qual alcançada, quando o capitão o viu sem mãos e com a bandeira, Ihe perguntou com que tivera mão nela, já que não tinha mãos; ele respondeu que com os cotinhos dos braços a tivera.

Daqui veio ele e seus sucessores terem este apelido de Cotinhos, que outros dizem Coutinhos, fazendo-lhe el-Rei entre outras mais mercês esta dele.

Era esta Capitoa D. Filipa Coutinha dama da Excelente Senhora, e daí casou; foi recebida em casa de D. Gastão, seu tio, com o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara, que foi de mediana estatura, mas bem proporcionado; era gentil homem, de rosto bem assombrado e muito grave, no que bem representava o ser de sua pessoa e o cargo que tinha, e dotado de todas as boas partes, em especial muito largo de condição, amigo de seus criados e assim os teve muito honrados e ricos, porque o eram seus pais naquele tempo. O qual sabendo do falecimento do Capitão, seu pai, se veio na era de mil e quinhentos e quatro anos, pouco mais ou menos, com a dita D. Filipa Coutinha, sua mulher, para esta ilha, a tomar posse da capitania, onde a esteve governando alguns anos com muita prudência, paz e quietação.

Mas como a não há neste mundo não faltaram invejosos ou agravados dele, que o inquietassem, porque o contador Martim Vaz Bulhão, com que teve dúvidas, e um Frei Bartolameu , então ouvidor do Eclesiástico nesta terra, João d’Outeiro, cavaleiro do hábito de Cristo, sogro de D. Gilianes da Costa, Simão de Santarém, freire do hábito de Aviz, escrivão na mesma vila, Luiseanes, cavaleiro do hábito de Santiago, genro de Gonçalo Vaz, o Velho, Francisco da Cunha, fidalgo, marido de D. Beatriz, filha natural do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, primeiro do nome, todos moradores em Vila Franca, e João Fernandes Examinado, pai de João Álvares Examinado, da Alagoa, por diferenças de uma demanda que teve com ele, e outros que se ajuntaram na mesma consulta, fizeram a el-Rei capítulos dele. Uns dizem que por causa dumas escrituras que desapareceram, outros que por causa de mulheres, outros que por recolher homiziados em sua casa.

Tão importunado se viu el-Rei que o mandou ir emprazado à Corte, pelo que foi forçado ir-se desta ilha, da qual levou consigo muitos homens, fidalgos, nobres e honrados, dos principais da terra, seus amigos que, às suas próprias custas de cada um, o quiseram acompanhar naquela trabalhosa jornada, que dizem ser: Sebastião Barbosa, o Velho, grão dizedor, e seu filho Hector Barbosa, Jorge Nunes Botelho, Diogo Nunes Botelho, Pero de Teive, Rui Gonçalves e Gonçalo Vaz, filhos de João Gonçalves Botelho, do lugar de Rosto de Cão, Álvaro Lopes, o Velho, de Santo António, Pero Roiz Raposo e Diogo Roiz Raposo, filhos de Rui Vaz Gago do Trato, Estêvão Álvares de Rezende, João Álvares do Sal, João Roiz Badilha, Pedralvres Benavides, da Ponta Delgada, Diogo Dias Brandão e João da Grã, de Vila Franca, Rui Tavares e Gonçalo Tavares, irmãos, Baltasar Vaz de Sousa e João do Penedo, da Ribeira Grande, Guterres Lopes, Pero Manuel, Estêvão de Oliveira, Gaspar Pires Carvalho, de Água do Pau, Vasco de Medeiros, Fernão Lopes de Frielas, João Roiz, da Alagoa, pai de Manuel Roiz, vigairo dos Fenais da Maia. E outros a que não soube os nomes partiram desta ilha na era de mil e quinhentos e dez, pouco mais ou menos.

E chegando à Corte foi despedido por el-Rei, com os que levava em sua companhia, caminho de África, aonde foi ter a Tânger, e estando ali alguns meses, sabendo el-Rei D. Manuel que el-Rei de Fez, movido das afrontas que Ihe cada dia os fronteiros faziam, determinava de ir cercar outra vez a Arzila, com muita gente e munições de guerra ; entre outros fronteiros que nela então se acharam foi este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara que, de Tânger, donde estava por mandado de el-Rei, se foi a Arzila, por Iho el-Rei assim mandar por uma carta, levando consigo quarenta de cavalo, desta gente nobre que tenho dito, e cinquenta besteiros e outros homens de pé, onde esteve alguns meses até se alevantar o cerco, como acima disse. E por todo o tempo esteve em África um ano, que foi o de mil e quinhentos e onze, pouco mais ou menos.

E o dito cronista Damião de Goes no capítulo terceiro da terceira parte da Crónica de el-Rei D. Manuel diz que estas e outras coisas aconteceram na era de mil e quinhentos e nove e mil e quinhentos e dez e mil e quinhentos e onze, pelo que não se pode entender que fosse este Capitão Rui Gonçalves o terceiro Capitão desta ilha, primeiro do nome, como se diz na relação dos Capitães da ilha da Madeira; pois esse e seu filho João Gonçalves ou João Roiz, que Ihe sucedeu na capitania, já então eram ambos falecidos e já era, nestes anos sobreditos, este Rui Gonçalves da Câmara quinto Capitão desta ilha de S. Miguel, segundo do nome, neto do outro Rui Gonçalves da Câmara, a que alguns sem razão queriam atribuir o sobredito socorro.

E em África fizeram os naturais desta ilha muitas cavalgadas, no tempo que lá estiveram acompanhando seu Capitão, que foi um ano inteiro, onde todos foram armados cavaleiros.

Depois do Capitão fazer estes serviços um ano à Coroa, em África, se veio à Corte com sua gente, bem concertada e muito lustrosa, a beijar a mão a el-Rei D. Manuel, onde, pelos capítulos que dele haviam dado, saiu a sentença contra ele, por onde perdeu a jurdição e capitania, o que vendo ele se deixou andar na Corte seis anos em que veio criar estreita amizade com Jorge de Melo, monteiro-mor, com o qual se concertou que Ihe daria seu filho, Manuel da Câmara, para casar com D. Joana de Mendonça, sua filha, e que Jorge de Melo Ihe entregaria a jurdição e capitania perdida; o que cumpriu daí a pouco tempo, porque uns dizem que um dia ao jantar, outros que uma noite, véspera da festa de Natal, estando o Capitão Rui Gonçalves da Câmara jantando ou consoando, Ihe mandou Jorge de Melo entre dois pratos, por dois criados, a sua jurdição, dizendo que aquela iguaria Ihe mandava Jorge de Melo, com o que Ihe acabou de confirmar também de sua parte a promessa feita, de casar seu filho com sua filha, sem a Capitoa D. Filipa ser sabedora, nem ser contente no tal casamento depois que o soube; mas isso não foi parte para deixar de haver efeito, como houve. E depois contarei, quando tratar do dito Manuel da Câmara, que sucedeu a seu pai Rui Gonçalves da Câmara, na casa e capitania.

Havida a jurdição pelo modo sobredito, tendo feito de custo, nestas idas de Portugal e de África e estada na Corte, perto de vinte mil cruzados, se veio, no ano de mil e quinhentos e dezassete, muito endividado, o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara para esta ilha, onde foi recebido no porto de Vila Franca, quando desembarcou, com muita festa e procissão solene e levado à igreja Matriz do Arcanjo S. Miguel, onde deu muitas graças a Deus, por o trazer livre de tantos trabalhos. Mas os que fizeram os capítulos, não se tendo por livres, cobraram carta de immizidade contra ele, para que não entendesse em seus casos, nem se antremetesse em coisas suas. E nos sete anos que esteve absente, seu tio, Pero Roiz da Câmara, governou a capitania por ele.

Teve este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara de sua mulher, D. Filipa Coutinha, três filhos, Simão Gonçalves da Câmara, Manuel da Câmara e João de Sousa, e duas filhas, D. Hierónima e D. Guiomar. Também teve um filho natural, chamado Miguel da Silveira. Simão Gonçalves da Câmara, o mais velho, morreu mancebo, antes do dilúvio de Vila Franca; todos os mais faleceram no mesmo dilúvio, tirando Manuel da Câmara que não se achou aquela noite na dita vila, como direi adiante.

Procurou este Capitão, em seu tempo, dar lustro a esta ilha, atraindo a si muitos homens honrados, fazendo-lhe todas as honras e favores possíveis. Alguns dizem que ele mandou vir a semente de pastel, de Tolosa, de França, e muitas aves e árvores diversas. E assim mandou fazer o mais rico pomar de toda a ilha, na sua quinta do Cavouquo onde tinha uma fonte de água, além de muitas árvores de espinho de toda a sorte que nele havia; não faltavam grandes castanheiros e nogueiras que davam muitas nozes e castanhas, pereiros e pereiras, de que se colhiam em seu tempo infinidade de peros e outras frutas, e esquisitas árvores que com muita curiosidade mandava vir de remotas terras. Fez também, na vila de Alagoa, uns fortes e ricos paços de grão casaria, com compridos esteios de cerne por dentro das paredes, até o sobrado, para assim ficarem mais seguros contra os contínuos terramotos que nesta terra então havia; os quais paços, ainda que estão quase arruinados, mostram a magnificência e grandeza de quem os mandou fazer. Depois os fez consertar o conde D. Rui Gonçalves da Câmara, seu neto. Fez também a quinta do Cavouquo que, por honra de seu autor, deveram de acrescentar e conservar seus ilustres sucessores, já que pelo proveito e refresco, que destas coisas colheriam, o não fazem. Mas a causa disto é por nesta ilha, que é sua morada, serem hóspedes e lá no Reino terem seu principal assento, de que fazem mais cabedal.

Mandou também fazer um formoso galeão e bem artilhado, com que se servia das coisas do Reino e de outras partes, quando Ihe era necessário.

Mandou este Capitão em seu tempo fazer muitas atafonas na vila da Ponta Delgada, junto do mosteiro de S. Francisco e abaixo da igreja paroquial de S. Pedro, por aliviar a opressão que o povo padecia em mandar fazer as farinhas aos moinhos da vila da Ribeira Grande, que estavam longe. Mandou trazer de Portugal codornizes e coelhos, que multiplicaram muito.

Também mandou trazer perdizes, que se perderam.

Porque João de Melo, irmão do dito Capitão, se foi desta ilha, sendo mancebo, fazer frade da ordem de S. Bento, no mosteiro de S. Bernardo em Portugal, e nunca fez partilha nem pediu sua parte ao dito Capitão, depois da morte de seu pai e mãe; falecendo o dito João de Melo, mandou o prelado daquele mosteiro onde ele professou arrecadar a fazenda que Ihe cabia da sua herança, havendo-a por sentença julgada, a qual dizem que montaria mil cruzados, pouco mais ou menos. Veio o Capitão a pagar e entregar tudo, uns dizem que ao procurador do mosteiro, outros que, por João Pardo, homem nobre, veador de sua casa e seu ouvidor muitos anos, enviava os mil cruzados em dinheiro e juntamente muitas peças de ouro e prata e móvel rico de casa, como foram duas baixelas de prata branca e outra dourada, um cavalo muito formoso, três ou quatro pipas de cadeiras de estado com a guarnição de veludo e outras coisas a seu filho Manuel da Câmara que estava no Reino, e por isto e a contia da dívida fazerem muita soma, ou por ele o pagar de má vontade, que Ihe deu trabalho a juntá-lo, pelo tomar em tempo que ainda não tinha acabado de sanear as feridas dos vinte mil cruzados que gastara em África e no Reino, recolhendo-se depois de jantar a descansar em seu leito, deu a alma a Deus que a criou, sem mais estrondo nem rumor da morte trabalhosa. E não faltou quem dissesse que morreu assim agastado de se Ihe cobrir o coração pelo dinheiro que entregou. Mas o certo é que acabou como acabaremos todos. A Capitoa D. Filipa, vendo que era tarde, o foi acordar por não dormir tanto, e achando-o com o sono da morte, se tomou a casa, e a vila da Ponta Delgada e depois a ilha em redondo, toda um grito e pranto, pela perda de tal senhor.

Era de idade perto de sessenta anos, ao menos dos cinquenta e cinco para cima, dos quais governou a capitania trinta e três anos.

Foi sepultado na capela-mor do mosteiro de S. Francisco. Tinha ele e a Capitoa D. Filipa feito juntamente um testamento em que mandaram fazer muitas obras pias aos vinte e nove de Janeiro de mil e quinhentos e vinte e quatro anos, em que nomearam por herdeiro a seu único filho Manuel da Câmara e o mesmo e seus descendentes deixaram também por testamenteiros. Mandou dar largas esmolas a pobres envergonhados e vestir logo doze, e dizer muitas missas, anais, capelas e trintairos , e algumas cantadas, em cada um ano para sempre, e que do remanescente de sua terça o seu testamenteiro tirasse cada um ano dois cativos de terra de mouros, os mais desamparados e sem remédio que achasse.

A Capitoa D. Filipa foi sempre muito virtuosa e de muitas esmolas, e discreta em saber repartir. Afeiçoada a pessoas virtuosas e religiosas, folgava de falar com pessoas discretas, pela qual razão falava com poucas mulheres; era de grande autoridade na pessoa e na fala, muito caridosa com os enfermos de sua casa e de fora, de tal modo, que pelo mais pequeno negrinho de sua família, gastara liberalmente toda sua fazenda para Ihe dar saúde; havia de ver fazer as mezinhas que se ordenavam para os seus doentes. Não queria ouvir dizer mal de ninguém. Se no povo, ou entre oficiais de justiça, ou religiosos, havia discórdias, procurava pôr paz. Tinha cada dia, antes de comer, sua oração secreta diante de um retábulo onde estava um crucifixo, em que chorava muitas lágrimas. Todos os dias ouvia missa que mandava dizer em sua casa e sempre teve capelão até que faleceu. Quando era casada, mandava fazer muitos vestidos afim de os dar por amor de Deus, o que fazia secretamente.

Fez de sua terça a maior parte do mosteiro da Esperança, na vila da Ponta Delgada, em que recolheu as freiras de Vale de Cabaços, da vila de Água do Pau, em uma terra que Fernão do Quintal e sua mulher deram para se fazer o dito mosteiro; e depois fez umas casas encostadas a ele, em que morou viúva muitos anos, e por sua morte Ihas deixou. Depois do mosteiro acabado, fez tresladar os ossos de seu marido para a capela dele. Recebeu os sacramentos necessários antes de seu falecimento com dizer muitas palavras devotas e discretas, que em sua enfermidade sempre teve; faleceu de idade mais de oitenta anos, dia de Janeiro de madrugada, acabando o ano de mil e quinhentos e cinquenta e entrando o de cinquenta e um. Foi enterrado seu corpo, vestido no hábito de Santa Clara, na sepultura do Capitão seu marido, no mosteiro das Freiras da Esperança, onde mandam cantar dois anais. Mandou dizer muitas missas e trintairos, aprovando o que seu marido e ela mandaram em o testamento que ambos ordenaram.

Fizeram-se solenes ofícios por sua alma. Deixou as casas em que vivia, junto do mosteiro da Esperança, e dois moios de terra no termo da vila da Alagoa ao mesmo mosteiro, por trinta e tantos moios de trigo que Ihe tornou na Salga, da Achada dos Fanais da Maia, para dar a seu filho Manuel da Câmara, que ficou por administrador e testamenteiro, a qual terra rende para sempre dois moios de trigo cada ano. Foi sentida sua morte de todo o povo e muito mais de muitos pobres que ela com suas esmolas sustentava.