Cativos e presos na batalha os franceses que tenho dito, mandou o marquês de Santa Cruz ajuntar todos os do conselho, onde se concluiu na consulta que fossem castigados, pois vinham perturbar a paz que havia entre França e Espanha , e deu o marquês cargo a D. Francisco de Bovadilha para, com quatro companhias de soldados, assistir à execução desta justiça.
Três dias antes que os franceses presos viessem para ser justiçados, vieram os Hespanhóis feridos que disse; e depois, o primeiro dia de Agosto, pela manhã , festa de S. Pedro ad Vincula, desembarcaram os ditos franceses presos e logo foi lançado bando que se ajuntassem todos os soldados dos terços que tinham desembarcado com os ditos presos, e outros que saíram três dias antes com D. Lopo de Figueiroa, mestre de campo, com muitos capitães, a fim de se preparar o necessário, assim de refrescos e mantimentos, como para segurar a terra, que não houvesse saco nela, ainda que estava já mais que saqueada dos franceses. Preparado e feito um cadafalso no meio da praça, como o marquês tinha mandado, estando todos os terços dos soldados espanhóis juntos, luzidos e bem armados ao redor da praça da dita vila, com sua arcabuzaria e mosquetaria e seus capitães, veio o auditor, com meirinhos, escrivães e porteiros, junto do cadafalso, à banda de cima, perto do chafariz que na dita praça está, cercado de pessoas graves que em sua companhia ali vieram com ele, como a lugar de tribunal e cadeira onde havia de pronunciar sentença. Estando em pé, se tocaram os tambores por todas as quadras, e logo vieram os franceses mais fidalgos em duas fieiras, com as mãos atadas diante, quase todos com as cabeças descobertas, e uns religiosos, diante, com um crucifixo da Santa Misericórdia na mão de um deles, e outros frades, com um clérigo francês que em sua língua lhes dizia e interpretava o que os frades lhes pregavam em latim.
Vinham, como digo, nesta procissão todos os franceses mais fidalgos, senhores de vilas e lugares, que eram vinte e oito, todos mancebos de trinta anos para baixo, um só dos quais de boa disposição e grave de autoridade, parecia perto de quarenta anos. E, como chegaram ao cadafalso, antes de nenhum subir a ser degolado, apartando-se os soldados da guarda um pouco atrás e os franceses diante do crucifixo, de geolhos e as mãos alevantadas, mandou o auditor ao escrivão que lesse a sentença do marquês e dele, por Sua Majestade, e que com voz do porteiro fosse pronunciada, o qual logo se pôs em ordem de a ler e o porteiro em alta voz a apregoar desta maneira.
Saibam todos como esta justiça manda fazer o senhor Marquês de Santa Cruz por Sua Majestade, e seu auditor que presente está, a estes franceses, por cossairos e perturbadores da paz e confederação que entre os Reinos de Hespanha e de França estão perpetuadas, com pacto e conjuração assinada entre o Rei de França e por Sua Majestade, o qual sabendo a grande armada que em França o ano presente se fazia, mandou recados e cartas a el-Rei de França, dizendo como consentia e dissimulava fazerem-se em suas terras e Reino armadas de naus e gente, para virem contra suas terras e mar a lhe fazer danos e roubos, tendo confederação, pacto, liança e conjuração de perpétua paz e irmandade de entre eles e seus Reinos, como desde as guerras de São Quintino e seu casamento a esta parte se assentaram e conjuraram; ao qual el-Rei de França respondeu a Sua Majestade que nem ele nem por ele nenhuma cousa em seus Reinos se fazia nem faria contra Sua Majestade, nem ele de nada era sabedor, nem consentidor, pelo qual queria, pedia, dava licença, que se algumas armadas de naus e gentes de seus Reinos de França, em suas terras, conquista e mar achassem e encontrassem, com deliberação de lhes prejudicar e ofender, os pudessem destruir, prender e justiçar, como a cossairos pervertedores e perturbadores da paz e liança deles dois Reis e Reinos; dos quais e do qual resulta grande bem e proveito a estes dois Reinos serem castigados por tais. Sua Majestade, havendo recebido a semelhante resposta do Cristianíssimo Rei de França, e tendo mandado fazer uma grossa armada para mandar sobre a Terceira, que de sua obediência se quis isentar, e acolher em si franceses e piratas, que, com injusta causa e contra direito, de sua obediência se defendessem, e nela se fizesse uma colheita de cossairos, para neste seu mar e conquista roubar e saltear suas frotas e navios que por seu mar a seus tratos e cousas navegam; em a qual armada pôs Sua Majestade por geral ao senhor marquês, encomendando-lhe que viesse à Terceira, indo pela ilha de S. Miguel e mais ilhas, e onde fosse necessário tirar e destruir o que impedisse seu serviço e obediência, e, achando armadas de alguns franceses ou outras nações que contra isso viessem, lhes oferecesse batalha, e vencendo e prendendo os inimigos e amigo fizesse justiça conforme a direito dos grandes e dos pequenos, e que para tudo lhe dava poder bastante, assim como pelo Cristianíssimo senhor Rei de França, seu irmão, lhe era respondido e pedido. E, vindo Sua Excelência ao dito efeito por geral da armada de Sua Majestade, em favor desta ilha de S.
Miguel, a tirar e evitar a rebelião e desobediência da Terceira e os mais danos que podiam sobrevir, indo sua direita viagem, lhe saiu ao encontro, desta ilha de S. Miguel, uma grossa armada de franceses de mais de sessenta baixéis, naus e galeões, armados com gente, soldados e capitães de guerra, cujo geral era Filipe Strosse, em companhia e em favor de D. António, Prior do Crato, que com nome de Rei de Portugal e Majestade havia entrado nesta ilha, e a tinha saqueado e senhoreado, tomando suas bandeiras e arrastando-as, e pondo guardas nos lugares e vilas desta ilha, e perturbando a paz e sossego que para sempre está jurado, saindo contra a armada de Sua Majestade com deliberação de a destruir e roubar, pondo-o em execução e acometendo-a com grande estrondo e força de capitães e senhores de muitas vilas e lugares de França, e muitos e bem armados soldados e gente de guerra, e forte e grossa artilharia, dia do Apóstolo Santiago e dia de Sant‘Ana, no qual dia Deus Nosso Senhor teve por bem dar vitória ao senhor marquês de Santa Cruz e a toda a armada de Sua Majestade, ficando o dito D. António, Prior do Crato, com alguns baixéis. Na qual vitória foi morto Filipe Strosse, geral da dita armada de franceses, e morto o conde de Vimioso, de Portugal, e outros fidalgos, assim franceses como portugueses, e muitos soldados. E tomados vivos perto de trinta senhores franceses de vilas e lugares, cujos nomes não são expressos, que à sua custa traziam armado a seis e a sete naus e galeões, e outros cinquenta e três fidalgos menos ricos, a que todos Sua Excelência por Sua Majestade, e seu auditor presente, mandavam degolar em um cadafalso que na praça de Vila Franca desta ilha de S. Miguel, em lugar público, mandara fazer, e nele aos sobreditos oitenta e três fidalgos justiçar, e a obra de cento e cinquenta franceses, de baixa qualidade, enforcar perto do porto da dita vila, e a outros vinte e cinco no mais alto lugar do ilhéu da dita vila, e que à execução da sobredita justiça queria e mandava estar o capitão Bovadilha, com três companhias de soldados dos terços que vinham na armada de Sua Majestade, presentes com suas armas na dita praça até serem degolados todos aqueles oitenta e três franceses que presentes estavam a todo o sobredito, ouvindo a sentença e pregão que contra eles se pronunciava, para que viesse à notícia de todo o mundo . Sendo a dita sentença lida e apregoada em alta voz e pregão, e ouvida por todos os circunstantes, logo os tambores se tocaram pouco espaço, e cessando subiu primeiro no cadafalso o maior fidalgo daqueles franceses, senhor de muitas vilas e lugares , mancebo não mui grande de corpo, mas envolto em carnes, não mui branco, nem ruivo, como os mais daqueles eram, e de pouca barba. Saiu mui esforçado a morrer, havendo-se confessado ao pé do cadafalso a um clérigo francês e posto de giolhos no cadafalso diante de um crucifixo que alto, fora do cadafalso, tinha um frade, o algoz lhe atou as mãos de trás e tirou um cutelo pequeno, dos com que esfolam carneiros, o qual vendo o francês disse em alta voz: — com mi espada, com mi espada he de ser degolado a uso de mi tierra, que soi hidalgo. Dizendo isto, choveu tão grossa chuva que caía a cântaros, e ele dando gritos por sua espada, passada a chuva e tornada a gente tornou o algoz a tirar o cutelo e o francês a continuar por sua espada, que não no degolassem senão com ela, mas não tendo o algoz de ver com isso, lhe atou também os pés com as mãos por detrás, e lhe pôs um lenço diante dos olhos, e derriçando com o próprio cutelo, estando-o degolando se alevantava o dito francês nas pontas dos pés, a que tinha atadas as mãos por detrás e caiu para um lado, e logo um negro da própria vila, chamado Brito, lhe cortou a cabeça com um machado, que por se haver mostrado muito servidor de D. António , sendo tambor de uma das companhias, o mandou o auditor fazer aquele ofício de cortar com o machado as cabeças, e o algoz degolava. Acabado de degolar este, o despiu o algoz, ficando só em camisa, e tirando do meio do cadafalso, posto o corpo a um lado, com as pernas para fora do cadafalso, lhe puseram a cabeça no meio delas. Os mais dos franceses que haviam de ser degolados estavam ao pé do dito cadafalso; subindo-se um a um a degolar e vendo todos degolar a cada um. O segundo que subiu era gentil homem, mais alto e bem disposto de todos os mais, de idade de trinta anos, alvo e corado, de cabelo ruivo com duas gadelhas mui formosas, dependuradas de cima das orelhas, nas quais trazia umas vergas de ouro redondas, que davam muitas voltas, como ariéis, e querendo-lhas tirar, por mandado dos frades que aí estavam, castelhanos, para lhe dizerem missas, lhe faziam tanto sangue nas orelhas, que lhe davam pena; pelo que um dos circunstantes disse aos que as tiravam: — depois de degolado lhas tirareis. Este morreu com mostras de bom cristão, como quase todos mostraram, pois se confessavam e diziam o credo em latim e o salmo de Miserere mei Deus. Assim foram todos degolados um a um e postos com as pernas fora do cadafalso, com cada um sua cabeça entre elas, como o primeiro, postos uns sobre outros, por ser o cadafalso pequeno, no qual se mostrava um temeroso e espantoso espectáculo, em que foram degolados trinta e cinco. E porque a maior parte do dia era passada em os confessar, degolar, cortar-lhe as cabeças, despir e as outras solenidades, quis o marquês que levassem os quarenta e oito que ficavam junto da forca velha, para que ali fossem degolados depressa, como foram, sem lhe valer prometerem alguns pela vida dinheiro, vilas, castelos, e cavalos. Outros dizem que sós setenta foram degolados naquele dia, e duzentos enforcados naquele e dois dias seguintes.
O fidalgo francês, que o Capitão Alexandre prendeu por mandado do marquês, foi posto na varanda da Misericórdia com guarda, para que por seus olhos visse a execução da justiça, e esteve desde antes do pregão até os trinta e cinco serem degolados, que alguns dizem não serem mais de vinte e oito, mas segundo o que afirmam os que sepultaram e as cabeças que se contaram e viram cortadas, se entende serem os trinta e cinco que tenho dito. Como quer que seja, se tem por mais verdade que, entre os do cadafalso e os que junto à forca degolaram, foram oitenta e um, e cento e cinquenta que enforcaram em quatro forcas, três novas que fizeram junto do porto, mui grandes, e a velha, a qual como era de parede cercada, como uma casa, enforcaram nela os algozes vinte juntos, e acabado de serem afogados, lhe cortavam as cordas e enforcavam outros tantos; pelo que se dizia que eram muitos mais dos ditos cento e cinquenta. Aconteceu que trazendo um dos criados do francês que estava vendo fazer a justiça dos outros para contar em França o que via e entendia do pregão dos degolados e enforcados, e de outros reservados até a mercê de Sua Majestade, e querendo os algozes deixar o dito criado com outros que ao dia seguinte haviam de enforcar no ilhéu, escapou pelo pedir o dito francês, seu senhor e amo, para cura e serviço seu, que estava fraco e doente. O dia seguinte se viram outras duas forcas no ilhéu, mas por andar o mar alterado não foi possível fazer-se então justiça. E assim ficou até o terceiro dia do mês, que se acabou de fazer a execução dela, enforcando dezoito ou dezanove franceses mancebos, bem dispostos. Dizem ser o intento do marquês em os mandar enforcar no alto do ilhéu, para que todos que passassem ao longo dele e de terra, vendo aquela justiça, não usassem semelhantes obras e temessem outro tal castigo. Naqueles dias, com aquele terríbel espectáculo, era tanto e tal o temor nos moradores da terra, principalmente de Vila Franca, que não ousavam aparecer nem falar palavra. E até os que nem suspeita de culpa podiam ter, tinham medo e tremiam de temor, não confiando de si que não suspeitassem e receassem se lhes aconteceria outro tanto.
A todos os degolados que foram justiçados o primeiro dia no cadafalso se deu sepultura no adro da igreja de S. Miguel, à parte do sul, direito da torre dos sinos. Em uma grande sepultura que se fez, enterraram até vinte ou vinte e dois, e dentro na dita igreja, em outras três covas, sepultaram os outros; e os que foram degolados junto das forcas, ali fizeram duas grandes covas em que os enterraram. Acabado de se fazer isto e desfazer o cadafalso e de limpar o sangue dos degolados, que passaria de uma grande pipa e limpas as ruas dos fedores de cousas sujas, abonançando o mar que alterado andava, véspera de Nossa Senhora das Neves, ao dia da mesma festa, cinco de Agosto da dita era, chegou à dita vila o bispo D. Pedro de Castilho, mui cedo, pela manhã; foi bem acompanhado a visitar o marquês ao seu galeão S.
Martinho, do qual foi bem recebido, e tornou o mesmo dia comer a terra, em casa de Manuel da Mota, onde foi visitado de toda a cleresia da dita vila, mas não do vigairo António de Lira, a quem o dito mandou que não fosse visitar, pelo que dali por diante se ausentou, sem ousar aparecer em público, sem ter outra culpa mais que ir visitar a D. António . Logo se partiu o Bispo para a cidade aparelhar cousas que convinham para a ida e chegada do marquês quando lá fosse. E o mesmo dia de Nossa Senhora das Neves desembarcou o marquês muito alegre, acompanhado de grandes, estando o porto cheio de capitães e soldados; foi rodeado de todos direito à igreja matriz de S. Miguel. À entrada do adro, o estava esperando a cleresia com cruz e pálio, e, em chegando e vendo a cruz, se humilhou a ela, e recebido com pálio foi levado dentro à igreja com Te Deum Laudamus, onde deu graças a Deus pela vitória que lhe dera. E partiu logo assim em procissão a Nossa Senhora do Rosairo do convento de S.
Francisco, onde entrou com toda a cleresia, até à capela-mor, em que ouviu missa e pregação de um frade castelhano, bom letrado, ainda que mancebo, que no seu galeão veio. Esteve sentado junto dele D. Felix de Aragão, que dizem ser parente de Sua Majestade, muito gentil homem, ainda que então estava mal disposto de um braço, passado de um pelouro. E com ele o marquês de Vila Franca de Balear, D. Pedro de Toledo, filho de D. Garcia de Toledo, viso-Rei que foi de Nápoles e Príncipe do mar, depois da morte do senhor D. João d’Áustria; e o marquês de Favara, e outros grandes; e D. Lopo de Figueiroa, com muitos capitães; de maneira que, das grades a dentro, a capela toda era cheia destes senhores, onde todos com alegres sembrantes se falavam e conversavam. Acabada a missa, estiveram no mosteiro pouco espaço, em que viu o marquês a casa e sítio dela, e depois se foi a comer com os marqueses a casa de Jerónimo de Araújo, onde o marquês de Vila Franca pousava e à tarde tornou Sua Exª. a embarcar, e não tornou mais à dita vila, porque chegou da Terceira um patacho que mandou Manuel da Silva, como governador dela, com uma carta em que pedia ao marquês os franceses prisioneiros por seu justo resgate, ao que o marquês não quis responder, por suspeitar que vinha este recado mais por servir de espia, que para dar resgate; antes mandou pôr a bom recado toda a gente que o patacho trazia. E, porque a sua armada estivesse mais segura, se partiu o dia seguinte de Vila Franca para Ponta Delgada, onde o receberam com salva da terra de muita e espantosa artilharia, a que a armada do mar respondeu com a sua; e desembarcando aquele dia de S. Mateus em que chegou, se recebeu com grande alegria e contentamento de todo o povo, de que foi acompanhado até a igreja matriz do Mártir S. Sebastião, e dali até à fortaleza, mostrando-se mui benigno e afábel a todos, principalmente ao Bispo e ao Capitão Alexandre, e a Francisco de Arruda da Costa, e aos mais que o foram dantes visitar ao galeão junto de Vila Franca. Donde foram levados os presos em um barco à cidade, onde degolaram a Gaspar Gonçalves, fidalgo, vereador que então era na Vila Franca, e outros foram condenados a outras penas.