Carreiro da Costa, 1945
De entre os problemas económicos em equação no arquipélago dos Açores, o da sericicultura é dos que mais tem apaixonado aqueles que, no decorrer dos tempos, vêm pugnando pela criação de novas fontes de riqueza para estas ilhas.
O estudioso que se debruçar sobre os livros antigos destas ilhas, verificará que a questão da criação do sirgo (bicho da seda) e da plantação intensiva das amoreiras foi objecto em todos os tempos de grande atenção por parte de quem governava.
Já no século XVI, na ilha de Santa Maria, havia «terras de pão... com muitas árvores de fruto, figueiras e amoreiras»—(Fructuoso, Saudades da Terra, Liv.° III, 58). No início do século XVII, em Dezembro de 1602, o Corregedor Leornardo da’Cunha; ao proceder em Vila Franca do Campo à sua segunda correição, notou que os vereadores não haviam cumprido «o capítulo da correição passada no particular na plantação das árvores, pelo que mandou aos oficiais da Câmara...
Que nos montes baldios, nos termos desta vila façam plantar pinhais e os façam defender e guardar em maneira que se possam bem criar, e que nos logares que não forem para pinhais façam plantar castanheiros, amoreiras e quaisquer outras árvores que nas ditas terras se poderem criar, como são nogueiras e larangeiras...)»
(Mendonça Dias, A Vila, V. Franca do Campo, 1927, vol. VI, pág.81).
Nos meados do mesmo século, o Estado era de tal modo exigente na plantação de árvores que, sobre a amoreira a que ao tempo chamavam a «rica árvore» tão necessária ao fabrico da seda, chegou a publicar-se um «Regimento para a cultura da seda e criação dos bichos e cultura da amoreira».
Em 1691, o Corregedor de Angra determinava que se continuasse o plantio das amoreiras, segundo a forma indicada nas Ordenações do Reino, mandando ao mesmo tempo que todo o lavrador que possuísse terreno conveniente para este plantio colocasse na terra todos os anos, nos meses de Novembro e Dezembro, doze estacas grossas e que todos os anos as Câmaras procedessem a vistorias por intermédio dos escrivões pedâneos os quais organizariam livros de registos.
Em 1719 e 1720, um tronco de amoreira, na ilha de S. Jorge, valia 2$500 e 3$000— o que era um preço muito apreciável em relação ao pinheiro, que era baratíssimo. No século XVIII poderemos facilmente ajuizar do movimento pró-amoreiras, se compulsarmos as colecções de jornais desse tempo, especialmente «O Agricultor Micaelense» da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense.
De entre os açorianos que nos últimos anos muito pugnaram pela solução do problema da sericicultura, destacaremos os nomes do Coronel Linhares de Lima e do falecido Comendador Jaime Hintze, o primeiro como Ministro da Agricultura que promoveu a publicação do decreto n.° 18.604 de 12 de Julho de 1930; o segundo como agricultor e industrial que, na sua conhecida granja da «Gorreana», muito trabalhou em sua vida para que a cultura do sirgo e a indústria da seda se alicerçassem em S. Miguel por forma a constituírem, de futuro, uma importante fonte de receita para a respectiva economia rural.
A publicação daquele importante diploma, conquanto se destinasse quase exclusivamente ao Continente, não deixou de ter reflexos nos Açores, onde as Juntas Gerais dos respectivos distritos desde logo promoveram a intensificação da cultura da amoreira.
O pequeno relatório que antecede o referido decreto cuja iniciativa se deveu ao Governo de que fazia parte o ilustre picoense Coronel Linhares de Lima, reconhece que sendo a indústria sericícola antiga e tradicional no País, como tal tem sido em diversas ocasiões, relativamente frequentes, objecto das atenções do Estado.
«Nem sempre, porém e completamente cobertas de êxito, por circunstâncias intrínsecas, derivado da própria natureza do seu exercício e, principalmente, talvez pela falta de perseverança e de continuidade nas medidas adoptadas».
«Persiste, no entanto, ainda agora, — diz-se no mesmo relatório — como indústria agrícola doméstica, susceptível, quando bem exercida, de resultados remuneradores para as populações rurais, como pode e deve tornar-se um factor importante para melhoramento da situação económica portuguesa desde que se congreguem e resultem profícuos os esforços tendentes a suster ou, quando muito a diminuir a importação de matéria prima da indústria renascente de fiação e tecelagem da Seda».
No conjunto de medidas preconizadas pelo decreto a que nos reportamos e que bom seria se, em toda a sua extensão, se pusesse em vigor nos Açores, encontram-se várias e importantes disposições:
umas referentes à protecção à cultura da amoreira e à sericicultura; outras fomentando a organização de associações sericicolas;
outras ainda prevendo a protecção oficial à indústria de fiação de sedas;
outras finalmente criando organismos de estudos e de investigação tendentes ao desenvolvimento da sericicultura e da sericitécnica.
Relativamente ao problema circunscrito aos Açores, designadamente à ilha de S. Miguel, cabe-nos evocar o nome já acima mencionado do Comendador Jaime Hintze – micaelense há pouco falecido e que por tanto haver pugnado pela causa agrícola e industrial desta ilha é por nós considerado como um exemplo digno de ser imitado por quantos vêem na agricultura a única e verdadeira fonte de riqueza da ilha de S. Miguel.
A comunicação apresentada por aquele antigo governador do Distrito de Ponta Delgada ao I Congresso Açoriano, realizado em Lisboa no mês de Maio do ano de 1938, é um documento que tem muito interesse já por nos dar uma idéia geral do problema da sericultura quanto ao nosso País, quer por situar o caso micaelense nos índices do mesmo, quer ainda por nos evocar a série de experiências até então levadas a efeito na sua aludida granja, sob a orientação técnica dos Serviços Agronómicos da Junta Geral do Distrito, que só na Gorreana plantou no outono de 1928, duzentas amoreiras da variedade Moretti — o que lhe permitiu chegar a algumas importantes conclusões e propor algumas medidas atinentes ao estudo circunstanciado do problema em causa e sua resolução definitiva.
Ao dissertar sobre o desenvolvimento da amoreira e depois de se haver apoiado no que a tal respeito afirmara o sericicultor Graça da Cruz, quanto ao que se passava em vários países europeus, nomeadamente em Portugal, escrevia Jaime Hintze em 1938:
«Em São Miguel, com um clima e terrenos que para a vegetação, crescimento e desenvolvimento da amoreira são, sem dúvida, privilegiadíssimos e que logram fazer produzir duas e mesmo três colheitas por ano de folhas de amoreira, o incremento de tal cultura será positivamente assombroso. Temos que considerar ainda que a nossa água não é calcárea.
Este pormenor é importante, porque é sabido que a água que contém cal não se presta à extracção do fio do casulo—dificultando e até impossibilitando o desenrolamento do mesmo fio.
É por isso que se emprega água da chuva colhida em depósitos ou distilada, com dispêndio e incómodos consideráveis, nos meios onde só existe água calcárea, que são muitos ou quase todos os que exploram a sericicultura. Ninguém ignora quanto a humidade do clima, o sistema de chuvas, a constituição do terreno e as demais circunstâncias da ilha influirão no desenvolvimento exuberante das plantas que alimentam o bicho da seda.
«Eu mesmo fiz experiência na Gorreana, neste caso simplesmente para ver de quanto era capaz, quanto à cultura da amoreira, o terreno de São Miguel, e obtive três colheitas. A amoreira vegeta de tal forma que poderá facilmente dar quantidades de folhas desde o mês de Abril a Setembro e o bastante para que se possam criar três culturas de sirgo, o que é muito importante. A planta em três anos está já em plena produção».
O alcance económico da sericicultura, como indústria caseira, era entrevisto por Jaime Hintze na referida comunicação da seguinte maneira:
«A sericicultura, é uma indústria caseira, o que tem demonstrado várias tentativas infrutíferas quando se desejou industrializar a educação do bicho da seda. Até isso convém, pois espalha-se a cultura por toda a parte, indo a remuneração a todos os recantos da ilha.
Seria ela uma forma de contrabalançar a falta de emigração que se vem notando na Ilha de São Miguel, em face do crescimento constante da sua população. Não esqueçamos que só São Miguel tem aproximadamente e a multiplicar-se sempre, cerca de metade da população das nove ilhas.
Outro aspecto da questão e que importa à economia, à moral e até à saúde pública, é o facto de a sericicultura ser indústria perfeitatamente caseira.
Assim, há serviços, como recolha de folhas e tantos outros, que são leves e nada anti-higiénicos, a que até as crianças se podem dedicar, sem inconvenientes, antes sim com ajuda para a economia pobre dos pais.
As mulheres podem também, até sem abandonarem o lar, dar o seu valioso e numeroso concurso para a produção do sirgo e dos casulos, sem ficarem sujeitas à insalubridade das grandes fábricas e aos perigos morais a que se expõem em tais fábricas, tudo tão digno de condenação dos tratadistas modernos de economia, que sejam moral e humanitariamente mais bem orientados.»
Mas a solução que Jaime Hindze propunha para o problema serícícola micaelense estava integrada num conjunto de organismos técnicos que ele idealizava ver criado no distrito de Ponta Delgada, nos capítulos da agricultura e da pecuária, que compreendia serviços laboratoriais e campos de experiências devidamente apetrechados, divisão da ilha de S. Miguel em zonas de exploração perfeitamente distintas e realização de uma série de estudos tendentes à colocação dos produtos obtidos.
Era um conjunto de realizações de tal maneira amplo que jamais poderá ser objecto de tratamento, dado o muito que antes do mais se precisa fazer nos referidos capítulos agrícola e pecuário e, muito particularmente, no tocante às indústrias caseiras, algumas das quais, pelo seu cunho tradicional, terão de ser reconduzidas ao seu primitivo desenvolvimento.
No entanto, pelo que sabemos da questão sericícola, propriamente dita, enquadrada no plano geral do fomento agro-pecuário do arquipélago, a Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada no desejo de ver o problema encaminhar-se para o campo da prática, vem estabelecendo desde há anos a esta parte alguns viveiros de amoreiras, a cargo da respectiva Estação Agrária e promovendo a plantação destas nas estradas e demais recintos onde a técnica e o turismo o tem aconselhado.
Estas medidas só por si já muito ajudariam a resolver o problema, mas aquele corpo administrativo, consciente ainda do alcance económico da sericicultura, ainda agora, de acordo com a Direcção Geral dos Serviços Agrícolas, acaba de prever uma série de trabalhos relativos ao seu estudo definitivo, sob o ponto de vista técnico e prático, atribuindo tal especialidade ao Posto Agrícola da Ribeira Grande, em vésperas de conclusão, e em cujo conjunto de construções foi edificada uma sirgaria com todos os requisitos que a técnica moderna mais recomenda.
Campo de estudo e de acção, por parte dos técnicos que tiverem a seu cargo a direcção daquele posto agrícola, cujo funcionamento deve iniciar-se por todo o ano de 1946 e, simultaneamente, local de observação e de consulta, por parte de quem deseje cuidar da cultura do bicho da seda, entre nós, a sirgaria do Posto Agrícola da Ribeira Grande é, certamente, o primeiro passo que mais directamente dá um corpo administrativo insular no sentido da solução mais adequada para o problema de sericicultura nos Açores. ,
Nos Açores temos nota da existência das duas espécies: a Morus nigra, L, que é boa sobretudo para o consumo dos frutos, de sabor mais acentuado e maiores; e a “Amoreira branca”, Morus alba, L, a preferida para o bicho-da-seda. Encontram-se em muitas estradas de praticamente todas a ilhas. Embora existam várias espécies comerciais de bichos da seda, Bombyx mori é o mais utilizado e estudado.
De acordo com os textos de Confúcio, a descoberta da produção de seda data de cerca de 2700 aC , embora os registos arqueológicos apontem para o período Yangshao (5000-3000 aC). A sericicultura é uma das indústrias caseiras mais importantes em países como a China, Japão, Índia, Coréia, Brasil, Rússia, Itália e França. A China e a Índia são os dois principais produtores, responsáveis por cerca de 60% da produção mundial.
As larvas de bicho da seda são alimentadas pelas folhas da amoreira. Durante 40 dias comem sem parar e após a quarta metamorfose sobem por um galho e tecem os casulos de seda, feitos com fios de muitos metros de comprimento em redor do seu corpo fazendo movimentos geométricos em forma de número 8 até que todo o líquido que forma o fio termine. Isso passa-se no espaço de três dias. Depois, num período de três semanas, nasce uma borboleta branca.
Para se obter os fios de seda é preciso mergulhar os casulos em água quente para amolecê-los e retirar deles uma espécie de goma que os faz ficar presos uns aos outros. Uma vez encontradas as pontas dos fios, os casulos são desenrolados e fiados numa roda formando meadas, que depois são lavadas em água quente, batidas e purificadas com determinados tipos de ácidos. Este processo é repetido diversas vezes e depois a seda é seca e as meadas são penteadas, a fim de se obter fios macios para posterior tecelagem, que pode ser de seda pura ou misturada com outros tipos de fibras, como o algodão.